Entrevista:O Estado inteligente

sábado, junho 17, 2006

Os brasileiros com cara de Sérvia e Montenegro

Os brasileiros com cara de Sérvia e Montenegro
Por Liliana Pinheiro

Qualquer semelhança do que descreverei em seguida com as relações da oposição e da imprensa com o governo Lula é quase coincidência. Sem literalidade, apenas senti vontade de contar uma historinha para introduzir o assunto e traçar paralelos formais.

Topei nesta sexta, na rua, com um portador de deficiência mental, que cismou comigo. Não qualquer deficiência. Sem intenção de depreciá-lo — estamos aqui diante território desconhecido —, o sujeito era louco mesmo, como se diz em linguagem coloquial. Parecia instável, de olhar desafiador. A chance que tinha de fugir ao cerco, sem escândalo e pacificamente, se resumia a fazer com que ele se comportasse sem maiores destemperos. Minha opção: discordar fingindo que concordava e concordar fingindo que discordava, mas sempre tentando atingir nele algum ponto de razão. Em resumo, empreendi um misto de colaboração com a vastidão da causa insana dele com cooptação de sua mente para meu pequeno mundo razoável. Demorou um pouco, mas o tal seguiu caminho em paz, desimpedindo o meu. Deus o acompanhe e ajude.

Contada essa historinha, passo à livre reflexão sobre estratégias do cotidiano.

Uma que sempre me intrigou foi a dos mercados, da oposição e da imprensa para dar conta do presidente da República. O objetivo de qualquer desses jogadores econômicos e sociais sempre foi o de manter Luiz Inácio Lula da Silva longe do que acreditavam ser um descaminho. Isso incluiu uma boa dose de condescendência, colaboração e cooptação.

Temiam-se aventuras na macroeconomia. Um pacto silencioso foi feito para que Lula tivesse a liberdade de mergulhar de cabeça no neoliberalismo como uma tal “etapa de transição” — embora, naqueles idos de 2003, o Brasil já estivesse bem avançado no debate sobre o fracasso do chamado Consenso de Washington. E assim temos, hoje, que Lula e seu PT não descarrilaram na economia, mas a Argentina cresceu 8,6% no primeiro trimestre deste ano, e o Brasil, magros 3,4%. A comparação nos dois casos é com o mesmo período do ano passado. Mercados, oposição e imprensa ficaram com cara de Sérvia e Montenegro, mas tudo bem, pois a opção com o petista no governo seria nem chegar à classificação no ranking das economias emergentes com algum futuro.

Temia-se, ainda, que Lula encarnasse Chávez, o venezuelano que, então, já demonstrava na prática seu apreço por teses de democracia direta — ele e o povo, sem intermediários —, de produção em proveta e em série de episódios que tivessem um ar de luta de classes, para se perpetuar no poder e de censura furiosa imposta à imprensa.

O Congresso brasileiro, ameaçado pelo Conselhão do presidente, órgão originalmente criado para pré-aprovar reformas, em substituição ao legislador eleito para isso, tomou seus cuidados. Aprovou o pouco que lhe propunha o Planalto, mesmo medidas impopulares, sem muito debate técnico nem barulho político. Os próprios membros do Conselhão tomaram tento e não renderam nem de longe o que o governo queria que rendessem. E a oposição, nas Casas da lei, concordava fingindo que discordava e discordava fingindo que concordava. Só queria andar adiante, rumo a 2006, sem impedimentos nos caminhos institucionais.

A imprensa, de seu lado, deu a Lula o apoio habitual que reserva a presidentes recém-eleitos. O ruído chavista se fez presente no início da gestão, com a tentativa de criação do malfadado Conselho Federal de Jornalismo, que, se tivesse vingado, já teria baixado o impedimento profissional de jornalista ou colunista que o presidente não hesita em chamar de “bandido, malfeitor e mentiroso”. A imprensa protestou, esperneou, e o governo cessou a militância em prol da censura, deixando mais ou menos desimpedido o caminho da liberdade de expressão. Com isso, Lula também deixou as portas das manchetes escritas e televisivas abertas para registrar o discurso interminável do auto-elogio. A seu modo, o jornalismo também concordou fingindo que discordava e discordou fingindo que concordava. Só queria chegar a 2006, igualmente.

Pois é, 2006 chegou. Sabem o que estão todos debatendo? Como baixar os juros e como crescer. E ainda como impedir a venezuelanização do Brasil num segundo mandato de Lula, que, sem governabilidade e cheio da razão das urnas, poderia enveredar para a democracia direta. Ou o que fazer da produção em proveta e em série de episódios, patrocinados pelos cofres públicos, que tenham um ar de luta de classes, como a depredação do Congresso pelo MLST e a destruição pelo MST de um laboratório da Aracruz.

Não avançamos nada. Esperamos tanto por 2006 para, agora, esperar por 2010, com todos os problemas e temores intactos. A se confirmarem os prognósticos das pesquisas eleitorais, certamente ficaremos por mais quatro anos fingindo que concordamos quando discordamos e fingindo que discordamos quando concordamos. Lá vai o pêndulo: colaboração, cooptação; colaboração, cooptação; colaboração, cooptação...

Penso que a democracia brasileira tarda em identificar estratégias menos amadoras para lidar com suas personagens extravagantes. A minha, de dona de casa com sacola de feira a tiracolo nas poucas horas vagas, só serve para lidar com doidos de verdade.

[liliana@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 16 de junho de 2006.


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