Os que julgam que os valores éticos que podiam ser destruídos já o
foram talvez ainda não tenham visto nada. Reunidos hoje,
convencionais partidários poderão estar determinando que a hecatombe
moral da República apenas começa. Antes era mero ensaio. Sentindo-se
absolvidos, por causa de um sentimento geral de indiferença ou por um
alheamento da consciência cívica, convencidos de que conseguiram
impor à sociedade a tenebrosa visão segundo a qual todos os
habitantes da vida público-política são iguais, farinha do mesmo saco
- ou quadrilhas de crimes assemelhados -, confiantes na impunidade
reinante e, sobretudo, com a plena certeza de que a grande vantagem
nas pesquisas de intenção de voto resultará numa retumbante vitória
eleitoral, os praticantes das mais acachapantes bandalheiras já
havidas em nosso espaço público se preparam, eufóricos, para novos e
mais substanciosos butins, como se protagonistas e coadjuvantes
fossem de uma aperfeiçoada seqüência: Mensaleiros Parte II - A Missão.
Bem sabem eles que jamais a sociedade se sentiu tão perplexa,
desolada e impotente ante uma demolição sistemática de princípios,
crenças, valores, comportamentos e esperanças. Aproveitam-se eles do
fato de a Nação ainda não ter descoberto meios eficazes de reagir à
destruição dos critérios de mérito, pelos quais as pessoas deveriam
chegar a suas funções, galgar posições e receber avaliações em razão
da própria competência, do valor profissional, e não da condição de
companheiros, cupinchas, comparsas ou apaniguados. Tiram eles partido
das verdadeiras mudanças que têm empreendido: do desestímulo ao
esforço pessoal do aprendizado, do desprezo ao valor do conhecimento
preciso, do repudio à correspondência entre a palavra e a ação, ou
entre o discurso e os fatos, e de tudo aquilo, enfim, que leva à
substituição da realidade pelo faz-de-conta, ou do que "é", de
verdade, pelo "como se fosse".
Acima de tudo, eles tiram partido da burla. A burla à lei por meio do
uso de uma novilíngua, que transforma a criminosa prática do caixa 2
em simples uso de "recursos não contabilizados", os cabeludos delitos
de extorsão, concussão, corrupção ativa e passiva, em meros
"equívocos", ou as inaugurações proibidas pela legislação eleitoral
em rotineiras "vistorias" ou "inspeções" de obras. O que é mais
deletério, nessa burla, não é o desrespeito à lei, propriamente dito,
mas a maneira cínica como se tenta disfarçá-lo, pois nisso se passa à
inteligência da juventude a idéia de que todas as regras são
escamoteáveis, não havendo sequer necessidade de se fazer algum
esforço para criar um mínimo de coerência no abjeto disfarce.
No processo de complacência generalizada, com base na suposição - já
imposta a amplos setores da mídia - de que o que sobrou em nosso
espaço público-político é apenas uma geléia moral indistinta,
corrupta e fisiológica, os crimes acumulados contra a administração
pública vão perdendo importância, tornando-se "matéria requentada".
Quer dizer, cessa tudo quanto a moralidade antiga canta quando o
valor mais alto da novidade se alevanta... E aí a única novidade
realmente levada em conta são os índices das pesquisas eleitorais,
que quando favoráveis transformam néscios em sábios e bandidos em
santos. Não importa que tais índices decorram de benesses enganosas,
jorradas até o ermo dos grotões, para a compra da adesão dos que não
têm consciência da falta de perspectiva futura, ante o engodo da
esmola presente.
Mais de cem países empreendem um grandioso projeto: numa grande
caverna, escavada numa montanha de remota ilha acima do Círculo Polar
Ártico, constroem um imenso cofre, protegido pelos mais eficazes
dispositivos de segurança oferecidos pela tecnologia, no qual
pretendem guardar as sementes de, praticamente, todas as variedades
de alimentos existentes no planeta. São as fontes de sustento dos
seres humanos, produto de 10 mil anos de reprodução seletiva, desde
os primórdios da agricultura. Eis uma forma especial de proteção das
futuras gerações contra toda sorte de cataclismos.
Pois bem, esse modelo não poderia ser adotado por nossa sociedade,
para preservar as sementes de nossos valores éticos, por pelo menos
uns quatro anos? Tudo aquilo que bem ou mal acumulamos em termos de
evolução de costumes ético-políticos não deveria, de alguma forma,
ser bem guardado, para que nossos filhos e netos não venham a julgar
que apenas os espertalhões e inescrupulosos foram os bem-sucedidos no
território nacional, permanecendo os demais na mísera condição das
multidões desorganizadas, dos derrotados e desistentes da coisa pública?
Quem sabe não poderíamos espalhar pelas muitas regiões do País alguns
núcleos de resistência, verdadeiros cofres simbólicos, capazes de
preservar, por exemplo, modelos de probidade na vida púbica, de zelo
pelos recursos do contribuinte, de respeito ao ordenamento jurídico,
de cumprimento do compromisso assumido, de coerência entre o discurso
e a ação, de comedimento na utilização de bens da coletividade, de
decoro no exercício da função pública, de compostura na majestade do
alto cargo, de transparência na atividade de servidor do Estado - e
portanto, da sociedade? Ou, quem sabe, por meio desses resistentes
nichos, não pudéssemos recuperar os valores do trabalho, do
aprendizado, da cultura, da apreciação estética, do bom gosto, da
admiração pela sutileza do espírito humano, depois que tiver passado
a voraz nuvem de gafanhotos?
Antes de mais nada, neste momento é preciso ensinar nossos filhos a
não desistir da esperança e a guardar, com orgulho e carinho, as
sementes de nossos valores.