O procurador repetiu o que temos escrito desde 2003
Alvíssaras! Apareceu, enfim, alguém na República, além de Primeira
Leitura e de mais uns dois ou três (cito dois: Olavo de Carvalho e
Diogo Mainardi), que entendeu o que está em curso e o que é, de fato,
o governo do PT. Atentem que nem escrevi "governo Lula". Escrevi
"governo do PT". O procurador-geral da República, Antonio Fernando de
Souza, atribuiu nome e sobrenome ao que viu. Chamou o ajuntamento de
pessoas para assaltar o Estado de "quadrilha" e disse que uma
"organização criminosa" se formou para tramar a perpetuação de um
partido no poder.
É rigorosamente o que se vem sustentando aqui muito antes de qualquer
denúncia vir à luz. O que o procurador escreve com base na
investigação e nos autos — um trabalho que até Márcio Thomaz Bastos
considera "histórico" —, Primeira Leitura vem sustentando pelas lentes
da economia política desde 2001 — antes, portanto, de Lula chegar ao
poder. Parte considerável da imprensa ainda não vê o que está em
curso. Algumas ex-sólidas reputações do jornalismo falam até em um
suposto movimento "macarthista" contra o PT; fatias consideráveis da
imprensa sustentam que "todo mundo é igual", ignorando o ineditismo
dos métodos petistas — "ineditismo" para o Brasil, mas não para a
história da esquerda.
A imprensa, é fato, cumpriu parte da necessária tarefa de desmascarar
o PT. E declinou de algumas outras atribuições. O marco zero dessa
peça acusatória do procurador é a entrevista de Roberto Jefferson
concedida à jornalista Renata Lo Prete, da Folha. Foi ela que originou
a CPI e as demais investigações, com indícios de crimes que foram
aparecendo aos borbotões. A história do Brasil não poderá jamais
ignorar aquelas páginas.
O que a larga maioria da imprensa se negava e se nega a admitir — e
também as oposições, até outro dia ao menos — é que isso que se vê é
um sistema. Já não estávamos mais falando de batedores de carteira do
dinheiro público, do velho cartorialismo, dos gatunos das
porcentagens. Sem que esses males tenham sido extintos, outro, muito
maior, sobre eles deitou a sua sombra: o clepto-stalinismo; o assalto
ao Estado ancorado numa visão de mundo e numa ideologia. Tudo muito
capenga, é verdade, mas com uma marca inequívoca.
A própria Folha, que tem na sua história a entrevista que deu origem
ao deslindamento do que aí se vê, investe contra a sua conquista e seu
patrimônio jornalístico quando divide o alto de uma primeira página
entre um editorial algo tardio sobre os desmandos do governo Lula e
uma denúncia envolvendo Geraldo Alckmin e a Nossa Caixa. Que
noticiasse as duas coisas, é claro. Mas a opção pelo "equilíbrio",
naquele dia, da forma como se deu, bem como as suposições freqüentes
de alguns articulistas de que vestidos de um costureiro ou propaganda
de um banco, ainda que irregulares fossem, são a face tucana do que,
no petismo, segundo o procurador, é a "quadrilha" só servem para
deseducar e para produzir obscurantismo. Não! "Um danoninho não vale
por um bifinho."
Que se noticie tudo! Mas que se faça a distinção que o procurador faz
— clara, inequívoca, inquestionável — entre uma coisa e outra . E isso
nem sempre se faz, por comodismo, ideologia e até mesmo arrogância. Ao
longo destes quase três anos e meio do governo do PT, tive a chance de
conversar com muitos políticos da oposição. Eram e são raros os que
admitem que o PT tem um projeto de poder que, no seu pleno exercício,
exclui a democracia. A idéia, mesmo depois de devidamente explicada,
do Moderno Príncipe, na formulação gramsciana, lhes parece fantasiosa.
Por mais que os petistas dêem provas cabais de que assim se
constituem. Trata-se de arrogância, de não reconhecer o real tamanho
do inimigo. Acham que, ignorando as suas qualidades, ainda que
nefastas, ele se torna menos perigoso. Uma parte da imprensa não vê o
óbvio por ideologia e comodismo — o comodismo inclui um tanto de
burrice e de analfabetismo político.
É por isso que morro de tédio quanto leio o texto de algumas
reputações já encanecidas — o que lhes deveria dar experiência e
sabedoria, mas só aumenta a lista de livros que não leram — garantindo
que Lula se tornou igual aos outros; que o PT não mudou nada; que
resolveu seguir o padrão de sempre; que Brasil é assim desde as
capitanias hereditárias; que o Apedeuta traiu seus princípios; que os
métodos do atual governo em nada diferem dos de PSDB e PFL; que
Eduardo Azeredo e Roberto Brant (que deveriam ter sido cassados, como
os outros todos, observo) provam que não há diferença entre oposição e
situação; que as denúncias, enfim, contra Alckmin são uma ducha de
água fria no banho de ética prometido pelo candidato tucano.
Eu, confesso, não gosto dessa imagem do "banho de ética". Se Alckmin
me desse bola, jamais teria usado essa imagem. E não porque ele não
possa sustentá-la. É que essa conversa da política feita a partir do
aprumo ético costuma ser coisa das mais complicadas — e até perigosa.
A "ética" como departamento de polícia e organização secreta para
denunciar adversários é uma invenção do petismo em conluio com seu
braço jornalístico. Funcionou durante os oito anos do governo FHC como
uma máquina de destruir reputações e de inventar escândalos
fantasiosos: Sivam, dossiê Cayman, caso Eduardo Jorge ("EJ", como se
escrevia, para remeter, claro, a PC), privatizações.
Os canibais se esbaldavam. "Ética" é sempre a compreensão dominante de
um grupo sobre determinado assunto. A "ética" mais influente, não
raro, coincide com a do grupo que consegue se impor sobre os demais.
Sob o governo FHC, a imprensa aderiu à ética petista. Não é raro que
se transfira para um ente de razão — partido ou Estado — a aplicação,
então, dessa "ética coletiva", que pode simplesmente esmagar a moral
individual. O PT continua, por incrível que pareça, a ditar esses
valores. A cada vez que um jornalista "neste país" puser em pé de
igualdade o PT e os partidos de oposição — por mais que estes
pratiquem irregularidades, que têm de ser denunciadas e noticiadas, é
claro —, o governo é que estará sendo beneficiado. Porque justamente
desaparece a sua particularidade.
E a particularidade do PT está no fato de que "desenvolvendo-se,
subverte todo o sistema de relações intelectuais e morais, uma vez que
seu desenvolvimento significa, de fato, que todo ato é concebido como
útil ou prejudicial, como virtuoso ou criminoso, somente na medida em
que tem como ponto de referência o Moderno Príncipe e serve ou para
aumentar o seu poder ou para opor-se a ele. O Príncipe toma o lugar,
nas consciências, da divindade ou do imperativo categórico, torna-se a
base de um laicismo moderno e de uma completa laicização de toda a
vida e de todas as relações de costumes" (in Cadernos do Cárcere, de
Antonio Gramsci, vol. 3, pág. 19).
Escrevemos isso desde 2003. A rigor, o caráter do PT era apontado aqui
desde 2001, ano em que o site entrou no ar. Não há crime de fato sem
que haja antes uma idéia criminosa. A idéia criminosa dispensa o crime
de fato para que possa ser apontada e denunciada.
De resto, quem iguala crimes desiguais investe é na impunidade. Sempre
que vocês lerem por aí o famoso "é tudo a mesma coisa", lembrem-se do
relatório do procurador-geral da República. Que se punam e se noticiem
todas as transgressões. Mas que se saiba distinguir os crimes que
atentam contra a democracia e o Estado de Direito daqueles outros que
testam a sua validade. Contra a imprensa do "todo mundo é igual", usem
o texto do procurador Antonio Fernando de Souza.
[reinaldo@primeiraleitura.com.br]
Publicado em 12 de abril de 2006.