Operação Simpatia
Defensora da guerra, a secretária de Estado
agora prega a democracia e a justiça social
– e diz que Bush é um homem muito solidário
Vilma Gryzinski
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No primeiro governo do presidente George W. Bush, Condoleezza Rice encarnou o papel da senhora da guerra. Como assessora de Segurança Nacional, ocupou a linha de frente da política de intervenção preventiva, consubstanciada na invasão do Iraque. Agora, no segundo mandato, promovida a secretária de Estado, Condi, como é providencialmente chamada, mudou o foco: com o pior da situação iraquiana para trás, ela vem cruzando o planeta como a face mais humana do governo Bush e grande propagadora das vantagens da democracia. É muito mais fácil, em lugar de defender a guerra, pregar que é preciso fortalecer as instituições democráticas, combater a corrupção e ajudar os pobres a sair da miséria. Quem pode ser contra isso? Mesmo quando a missão inclui assuntos mais comezinhos, como as encrencas de Hugo Chávez na Venezuela e as hesitações brasileiras na Alca, Condi tem se saído extraordinariamente bem na Operação Simpatia. Sua espetacular história de sucesso a precede: nascida no coração racista da América, entrou na faculdade aos 15 anos, formou-se aos 19, doutorou-se com 26. Pianista, especialista em relações internacionais e fluente em russo, chegou a reitora de Stanford e, embora negue quase que diariamente, o caminho da Casa Branca é uma possibilidade no horizonte. Afável e supremamente confiante, falou a VEJA durante sua passagem por Brasília.
Veja – O presidente Hugo Chávez disse que há americanos preparando uma invasão da Venezuela. Verdade ou mentira?
Rice – Isso é simplesmente um escândalo. É claro que os Estados Unidos não vão invadir a Venezuela ou fazer qualquer coisa do gênero. Os EUA querem ter boas relações com a Venezuela. Existem preocupações relativas à democracia na Venezuela e à maneira como ela se relaciona com os vizinhos. Mas nós não vamos invadir a Venezuela.
Veja – Qual a melhor atitude a tomar quando se lida com um personagem como Chávez, que está sentado sobre um mar de petróleo, tem o apoio de 60% da população e pode usar as pressões americanas em seu favor?
Rice – A única coisa que faz sentido é ter uma pauta positiva. É sobre isso que vim conversar aqui. Falamos sobre a Venezuela, é certo, mas foi uma parte relativamente pequena das discussões. Falamos também sobre como este hemisfério, que fez progressos notáveis em termos de desenvolvimento democrático na última década, pode levar adiante esse processo de forma a causar impacto na vida das pessoas que ainda não se beneficiaram dele. Tratamos da necessidade de ter crescimento econômico, não apenas pelo fenômeno em si, mas para que redunde em melhorias na vida das pessoas, criando as circunstâncias adequadas para aumentar o nível de ensino e o acesso aos sistemas de saúde. A questão da liberalização comercial também está na pauta, porque esse é um dos motores do desenvolvimento econômico e contribui para melhorar o nível de vida das populações. Nós temos ainda uma pauta positiva na questão da ajuda a democracias frágeis. Quando há crises como a que houve recentemente no Equador, é muito bom que existam países sul-americanos dispostos a ajudar.
Veja – Existe no Brasil um medo generalizado de que, com a Alca, setores inteiros da economia nacional sejam riscados do mapa pela pura força da economia americana. O que a senhora diria para acalmar esses receios?
Rice – Eu entendo essas preocupações. A quem as tem, diria que, em geral, a liberalização do comércio tende a expandir as economias, fortalecendo os mercados e trazendo mais investimentos. Em suma, incentivando o crescimento. Sugeriria também que vissem o que aconteceu no México, com o Nafta.
Veja – Há opiniões divididas a respeito.
Rice – Olhem para o México, antes e depois do Nafta. Não há dúvida de que o acordo trouxe muita prosperidade. Os próprios mexicanos dirão que essa prosperidade em grande parte foi fruto da liberalização comercial produzida pelo Nafta. Vejam os negócios que estão sendo abertos – e não me refiro às grandes transações. Falo dos pequenos negócios, de novos mercados, de como tudo está avançando. E, mesmo em relação às pessoas que possam não se beneficiar disso, sempre há maneiras de ajudá-las a se ajustar melhor, através de treinamento e capacitação.
Veja – Uma pesquisa realizada depois da reeleição do presidente George W. Bush mostrou que 78% dos brasileiros têm uma opinião negativa sobre ele. Se a senhora tivesse um minuto para tentar convencer quem pensa assim a mudar de idéia, o que diria?
Rice – Eu diria: gostaria que conhecessem melhor esse presidente, seu comprometimento com um mundo mais seguro, os desafios que enfrentou depois que os Estados Unidos foram perversamente atacados em 11 de setembro, seu desejo de que todas as pessoas, não importa onde vivam, usufruam a liberdade. E sua solidariedade para com as pessoas que estão lutando para sair da pobreza e superar doenças. Esse presidente duplicou as contribuições americanas para programas de ajuda ao desenvolvimento durante seu mandato, destinou 15 bilhões de dólares para combater a aids ao longo de cinco anos nos países mais afetados. Gostaria que as pessoas prestassem mais atenção a esses gestos solidários.
Veja – Como a senhora explica que a imagem dele, em grande parte do mundo, seja exatamente o oposto?
Rice – Não sei dizer, exceto pelo fato de que o presidente teve de tomar decisões realmente duras. Depois dos ataques de 11 de setembro, nós tínhamos de travar a guerra contra o terrorismo e não podíamos fazer isso com uma posição simplesmente defensiva. Gosto de lembrar que os terroristas só precisam acertar uma vez, e nós precisamos acertar 100% do tempo. Não é uma luta justa. Tivemos de levar a guerra aos terroristas em lugares como o Afeganistão e o Iraque. Também tivemos de insistir num Oriente Médio diferente. E veja o que já conseguimos com essa insistência. É impressionante testemunhar as tropas sírias saindo do Líbano, por exemplo. Os libaneses provavelmente nunca poderiam sonhar que isso viesse a acontecer.
Veja – Em todo o Oriente Médio, no entanto, há um grande número de pessoas convencidas de que a pregação em prol da democracia é apenas mais um truque para impor o domínio americano. Elas vêem conspirações em toda parte e acham que o 11 de Setembro foi obra da CIA em conjunto com o Mossad. Como reagir a isso?
Rice – Temos de simplesmente continuar tentando mostrar a verdade, da mesma forma como fizemos durante a Guerra Fria. Mas creio que as imagens que chegam do Oriente Médio começam a contar uma história diferente. Hoje de manhã, estava vendo as dificuldades dos iraquianos para a formação de seu futuro governo. Ressalte-se porém que teria sido impossível pronunciar estas simples palavras: iraquianos discutindo o seu futuro governo. Acredito que haverá uma mudança de percepção à medida que ficar claro que a única motivação dos Estados Unidos é apoiar aqueles que querem ser livres – não, insisto, uma democracia ao estilo americano, pois os sistemas democráticos podem ser diferentes, como são, no Brasil, no Chile ou no Canadá. Os Estados Unidos querem um mundo em que as pessoas sejam livres para dizer o que pensam, para seguir a religião que quiserem, para educar os filhos como acharem melhor e para se beneficiar dos frutos de seu trabalho. E, acima de tudo, que estejam livres da batida na porta, à noite, da polícia secreta. É isso que defendemos. E não o fazemos numa posição de arrogância. Nós, mais do que qualquer outro país, temos de partir de uma posição de humildade, porque sabemos como o caminho democrático foi difícil nos Estados Unidos. Sempre lembro que, quando os pais da pátria diziam "Nós, o povo", não incluíam pessoas como eu. Muitos dos meus antepassados foram escravos. Na primeira Constituição, de 1787, houve um entendimento estabelecendo que um escravo valia três quintos de um homem. Qual o significado disso, num país erguido sobre princípios de igualdade e liberdade? Significava que ainda havia um longo caminho pela frente.
Veja – E quando quem bate na porta à noite são tropas americanas? Quando 20 000 civis iraquianos aparecem nas listas das baixas de guerra? Qual a justificativa moral para essas vítimas?
Rice – Não vamos nos esquecer de quem é responsável pela maioria das baixas civis. Gente como (o líder terrorista Abu Musab al-) Zarqawi e outros que foram para o Iraque porque simplesmente não querem que exista democracia lá.
Veja – Refiro-me a baixas feitas em operações militares.
Rice – As baixas civis no Iraque não são decorrentes apenas de operações militares. Os iraquianos hoje estão sofrendo baixas porque há terroristas que querem impedir que exista um futuro melhor. Gostaria de lembrar dos 300 000 mortos que já encontramos em covas coletivas (vítimas do regime de Saddam Hussein). Estava mais do que na hora de livrar o Iraque desse ditador brutal, e ele não iria embora apenas com mais resoluções da ONU. Sim, infelizmente houve civis que morreram em virtude de operações militares. Mas o povo afegão, por exemplo, estava melhor sob o Talibã, quando mulheres eram executadas em estádios de futebol?
Veja – Qual sua reação quando fica sabendo que iraquianas estão sendo obrigadas, hoje, a usar o hijab, a vestimenta tradicional, por pressão dos fundamentalistas?
Rice – Já falei com muitas iraquianas e elas estão lutando para garantir que seus direitos sejam consagrados na nova Constituição; seja o direito de cobrir a cabeça, o que é perfeitamente legítimo, ou de não fazê-lo. Conheci iraquianas que se vestem como eu e você, outras que usam o véu. Esse é o futuro que se descortina para elas – muito diferente do que poderiam esperar quando havia salas de estupro nas câmaras de tortura do regime, ou quando podiam ser fuziladas, com seus maridos e filhos, por ser curdas ou xiitas, quando as pessoas podiam ter a língua arrancada por criticar Saddam. É preciso pôr as coisas em perspectivas. Sei que o Iraque tem um caminho difícil pela frente, da mesma forma que o Afeganistão. Mas alguém pode dizer que esses países estavam melhor sob o regime de Saddam ou do Talibã?
Veja – A senhora pode garantir que o Iraque não vai virar república islâmica fundamentalista assim que os americanos derem as costas?
Rice – Ninguém pode garantir isso, mas posso dizer que as evidências até agora indicam que os iraquianos querem um país moderno, democrático e inclusivo. Quando os xiitas tiveram uma grande votação, na última eleição, muita gente se perguntou se não passariam de oprimidos, como foram durante o regime de Saddam, a opressores. Aconteceu justamente o contrário: eles convidaram os sunitas para fazer parte do governo, apesar da baixa participação deles na eleição. Os iraquianos querem deixar seu passado de brutalidade para trás.
Veja – A senhora nunca tem dúvidas? Nunca se diz "não sei o que fazer" quando defrontada com situações, digamos, como a do Haiti, que parecem tão sem saída, sem opções?
Rice – É verdade que existem lugares e situações que parecem que nunca vão ter solução. Mas o meu trabalho, a minha responsabilidade, não é ficar conjecturando, e sim procurar saídas. Muitas vezes digo às pessoas que me apresentam um problema e fazem uma boa análise dele que acharia a exposição muito boa se eu ainda estivesse nos meus tempos de Stanford. Acredito em buscar soluções, ancoradas nos princípios da democracia, e me anima o fato de que, olhando para o passado, existissem tantos problemas que pareciam insolúveis. Na própria América Latina, há quinze ou vinte anos, muita gente diria que não havia a possibilidade de existir democracia, mas aconteceu. Só tem de continuar.
Veja – Se, em vez de estar à frente do Departamento de Estado, a senhora chefiasse o Itamaraty, buscaria de forma tão prioritária um lugar para o Brasil num Conselho de Segurança ampliado?
Rice – Não fico nada surpresa que países que estão assumindo um papel mais assertivo tentem obter um assento no Conselho de Segurança. Acho saudável debater as estruturas da ONU. Só não podemos separar a questão do Conselho de Segurança da reforma da ONU em geral.
Rice – Acho que dentro de dez anos poderíamos ver um país fazendo progressos reais no plano interno. Isso significaria possibilitar acesso real ao ensino e à saúde aos brasileiros que hoje vivem marginalizados. Com esse alicerce democrático consolidado, veria um Brasil com peso real na região, ajudando a disseminar a democracia, a prosperidade e o livre-comércio. E que, a partir dessa base, se torne um ator global realmente importante, um promotor da democracia e da justiça social para todo o mundo. Há países emergindo como potências globais, como a Índia, outra grande democracia multiétnica, a África do Sul e o Brasil. Isso é uma coisa maravilhosa. Os Estados Unidos não temem que outros países sejam importantes, poderosos e capazes de agir no plano da política internacional, especialmente quando temos em comum os mesmos valores democráticos.