Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 16, 2005

EDITORIAIS de O ESTADO DE S.PAULO

Mercosul kafkiano

O governo brasileiro vai ceder à pretensão argentina de criar salvaguardas comerciais no Mercosul. Será mais um golpe contra o livre comércio entre os sócios do bloco e mais um retrocesso na política de integração. Mas a diplomacia brasileira, contrariando toda evidência, afirma exatamente o contrário. Brasília cederá mais uma vez, segundo a explicação oficial, para preservar a cooperação com o maior vizinho. "Não vale a pena azedar a relação bilateral por um punhado de dólares", disse uma fonte brasileira citada pela correspondente da Agência Estado em Buenos Aires, Marina Guimarães.

Para as empresas brasileiras forçadas a limitar suas vendas, não se trata de um punhado de dólares. Trata-se de uma perda injusta e economicamente importante, porque investiram e cuidaram de modernizar-se, mas ficam sujeitas a barreiras precisamente onde o comércio deveria ser mais livre.

As barreiras já existentes, negociadas ou não, afetam indústrias de calçados, de geladeiras, de máquinas de lavar, de tecidos e de eletrônicos. O comércio de veículos é regulado por um acordo já revisto por exigência dos produtores argentinos.

Pela última revisão desse acordo, o mercado automobilístico deverá ser liberalizado a partir de 1º de janeiro. Isso não ocorrerá, porque o governo argentino já anunciou a intenção de não cumprir o combinado.

Mas não exige só uma nova prorrogação: pretende a adoção de regras mais restritivas, por fábrica e não por vendas totais, e por tempo indefinido.

Nem a associação das montadoras argentinas, a Adefa, apóia um novo acordo sem prazo. Mas o governo do presidente Néstor Kirchner fez do protecionismo comercial uma de suas bandeiras políticas e tem conseguido, para agitá-la, o apoio do presidente brasileiro.

A proposta das salvaguardas surgiu há mais de um ano. Brasília resistiu, inicialmente, mas aceitou prolongar o debate e acabou cedendo. O anúncio do novo esquema, denominado Cláusula de Adaptação Competitiva, poderá ocorrer em 30 de novembro, quando os presidentes Néstor Kirchner e Luiz Inácio Lula da Silva celebrarem, num encontro em Puerto Iguazú, o 20º aniversário da instituição do Dia da Amizade entre as duas nações.

A data é incerta, segundo funcionários brasileiros, mas a decisão de atender o governo argentino foi tomada. A garantia foi dada às autoridades argentinas, segundo um auxiliar do presidente Kirchner, durante a Cúpula das Américas, em Mar del Plata.

"Temos em relação a essa proposta um número razoável de divergências conceituais", disse o secretário-executivo do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ivan Ramalho.

Brasília discorda, por exemplo, da adoção de um gatilho cambial, acionável quando houver grandes variações de valor entre o peso e o real. Pelo menos parte dos funcionários brasileiros defende um sistema de arbitragem, acessível aos empresários quando se julgarem prejudicados por barreiras. Falta, além disso, definir claramente os conceitos de dano e ameaça de dano à produção local.

O governo, segundo funcionários brasileiros, só aceitará um mecanismo com regras semelhantes ao do sistema de salvaguardas da Organização Mundial do Comércio (OMC). Mas, se o dispositivo regional for muito semelhante ao da OMC, para que adotá-lo?

Para satisfazer ao governo e aos empresários protecionistas da Argentina, as autoridades brasileiras terão de aceitar, obviamente, um mecanismo de proteção mais arbitrário que o consagrado pela OMC. Nesse caso, o Mercosul será, formalmente, um bloco sujeito a barreiras mais severas, em vários aspectos, do que as do mercado global. Que integração é essa?

Para os setores menos competitivos da indústria argentina, essa história de tons kafkianos pode fazer sentido: ganham proteção e não perdem as vantagens possíveis de uma integração comercial. Para a indústria brasileira, as concessões defendidas por Brasília só são aceitáveis para evitar um impasse mais custoso. Na prática, são vítimas de uma extorsão.

Para Brasília, enfim, esse é o preço de uma integração necessária para enfrentar as potências do Norte. Se o Brasil aceitar as salvaguardas, disse um diplomata brasileiro, a economia argentina, protegida, terá maior facilidade para atrair investimentos. Em outras palavras, o Brasil pagará para atrair capitais para a Argentina. Em troca, parece imaginar o presidente Lula, o Brasil terá apoio contra a Alca. Dá-se a isso o nome de estratégia.

As manobras de sempre

A s empresas de ônibus, responsáveis pela operação do sistema de transporte coletivo na capital, retiveram, nas garagens, quase 300 veículos a cada dia nas últimas semanas. Com isso, reduziram a oferta de pelo menos 250 mil lugares nas linhas de ônibus. Numa ação combinada com os patrões, motoristas e cobradores já anunciam greve a partir de 1º de dezembro, quando a demanda no sistema aumenta com a aproximação das festas de fim de ano. Juntos, donos de viações e seus empregados atuam seguindo a velha estratégia de castigar a população com a falta de transporte e, assim, pressionar a Prefeitura para que a remuneração pelos serviços prestados seja reajustada.

Em janeiro, o prefeito José Serra foi obrigado a elevar em 17,65% a tarifa de ônibus sob pena de enfrentar, já no início de seu governo, a paralisação do sistema de transporte público. O último reajuste havia sido concedido dois anos antes. Sua antecessora, Marta Suplicy, não quis desagradar à população durante a campanha eleitoral de 2004, apesar da crise financeira que atingia a Prefeitura. Pagou altos subsídios às empresas, prometeu farta remuneração aos perueiros e deixou a dívida para o seu sucessor.

Só para os perueiros, a administração petista deixou de cumprir compromissos no valor de R$ 60 milhões. As empresas de ônibus não receberam outros R$ 17 milhões relativos às gratuidades de dezembro de 2004 e reclamam outros R$ 25 milhões de dívidas acumuladas entre abril e outubro deste ano. Se não receberem, ameaçam não pagar o 13º salário aos funcionários. A categoria, por sua vez, já começou a planejar a greve.

Pressionado, o secretário municipal dos Transportes, Frederico Bussinger, admitiu, há dias, antecipar de março para 1º de janeiro o reajuste da remuneração das empresas de ônibus para reforçar seus caixas. Assegurou, no entanto, que isso não significa aumento da tarifa.

Insatisfeitos com a proposta, prevendo que o porcentual de reajuste da remuneração fique abaixo do esperado, empresários e dirigentes de cooperativas decidiram reter os ônibus nas garagens sob o argumento de que precisam reduzir custos para tentar cumprir seus compromissos com os funcionários.

É mais uma forma de pressão à qual o secretário Frederico Bussinger respondeu com a ameaça de rescisão contratual e com a publicação da Portaria 097/05, no Diário Oficial da cidade, no último dia 8, instituindo o Regulamento de Sanções e Multas (Resam). Trata-se do estabelecimento de regras mais rígidas de fiscalização e controle da qualidade dos serviços prestados. As penas variam da advertência à declaração de caducidade da concessão.

Fiscais da São Paulo Transportes (SPTrans) e da própria Secretaria Municipal de Transportes (SMT) estarão a postos, a partir do dia 19, fazendo cumprir o padrão de qualidade, de eficiência e de segurança definido no contrato firmado com as empresas. Se um motorista não permitir o embarque de passageiros no veículo, a empresa será multada em R$ 720,00 e, na reincidência, o valor dobra. A multa será de R$ 360,00 no caso do motorista trafegar em velocidade reduzida, obstruindo a marcha normal dos demais veículos.

São dois exemplos de uma extensa lista de normas que serão verificadas para assegurar aos passageiros bom serviço. Se conseguir impor fiscalização rígida, a Prefeitura finalmente estará cobrando das empresas a parte que lhes cabe na concessão do serviço.

A instalação do sistema integrado de transporte no governo Marta Suplicy tinha, entre outros, o objetivo de acabar com os subsídios pagos pela Prefeitura às empresas. Instalado em 2004 às pressas e baseado no uso do bilhete único, o sistema levou as gratuidades pagas pela Prefeitura a saltar de 3 milhões para 50 milhões mensais, em 2004. A dívida se acumulou e a estratégia danosa das empresas voltou.

O equilíbrio financeiro se estabelecerá com a divisão da dívida entre Prefeitura, empresas e população. O aumento de tarifas e de subsídios, certamente, virá. Espera-se que, em conjunto, seja cobrada a parte de quem até hoje só faturou, e muito.


 


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