Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 09, 2005

VEJA-Roberto Pompeu de Toledo:Sucesso e fracasso de um papa pop

Os 26 anos de pontificado de João Paulo II
foram marcados pelo paradoxo


A Igreja Católica, sob João Paulo II, cresceu como força política e diminuiu como religião. Esse é um dos paradoxos que caracterizam os 26 anos de reinado do papa polonês. Outro é que João Paulo II foi um perfeito homem de seu tempo na utilização precisa dos meios de comunicação, daí seu enorme sucesso, mas empregou esse dom inato a serviço de idéias de outro tempo – daí seu enorme fracasso. De Paulo VI, seu antecessor que conta (João Paulo I durou só um mês e pouco), dizia-se que era um papa hamletiano, torturado pela dúvida diante dos desafios de um mundo tensionado pela confrontação política e pela transformação social. João Paulo II era só certezas. Com isso, seduziu tanto quanto alienou – e não é só que tenha seduzido alguns e alienado outros. As mesmas pessoas, e talvez estas sejam maioria, podiam sentir-se ao mesmo tempo seduzidas por sua presença magnética e alienadas quanto à observância de seus ensinamentos.

O envolvimento de João Paulo II nas questões mundiais foi total. Ele não ajudou apenas, em sua obra mais bem-sucedida, a dar o empurrão final no comunismo do Leste Europeu. Não houve questão, nos mais diferentes rincões do mundo, que não lhe capturasse a atenção. Não se trata de algo novo, numa Igreja que se chama "católica", palavra grega equivalente a "universal", e que, como nenhuma outra, detém o privilégio de deitar sua influência mesmo sobre rincões e comunidades de outras crenças. Mas João Paulo II o fez de maneira mais contumaz e mais espetacular. Empreendeu 104 viagens a 129 países. Nessas ocasiões, superava-se como ator global. Inventou gestos como beijar o chão do país em que desembarcava, o que rendia imagens magníficas, o papa estirado no asfalto dos aeroportos, as brancas vestes esvoaçando ao vento. Suas apresentações, em estádios ou grandes praças públicas, só encontravam rival nos shows de rock.

João Paulo II foi, até o último grau, com perdão do palavrão, um papa "midiático". E dizer isso, em nossa época, é quase o mesmo que dizer "político". Quando ele assumiu não havia internet, a TV a cabo engatinhava e a oferta de transmissões globais via satélite era pífia, em relação ao que seria. Ele acompanhou o crescimento desses meios e cresceu com eles. Já não fosse a espetaculosidade milenar da Igreja Católica, com suas catedrais, seus ritos, seus cantos e as vestes de seus hierarcas, tudo isso foi potencializado pelos novos instrumentos. Até as imagens de sua agonia João Paulo II não sonegou ao público. Expôs-se à mídia até o fim. E no entanto, num país como o Brasil, que ele visitou três vezes, e em cada uma delas arrastou multidões, os católicos caíram de 89% da população, em 1980, para 73,9% em 2000, segundo os censos nacionais respectivos. Na Europa, o show de mídia que foi o pontificado de João Paulo II não se mostrou suficiente para estancar a indiferença com relação à religião ou o agnosticismo.

Culpa de João Paulo II? Antes, em primeiro lugar, a culpa é dos tempos que correm. A tendência à irreligiosidade, nos países europeus, colunas fundadoras e alicerces culturais do cristianismo, antecede a seu papado. No único país desenvolvido onde a religião impera, os Estados Unidos, os católicos são minoria. Nos países do Terceiro Mundo, a miséria e a ignorância favorecem a oferta de mercadoria enganosa no mercado das religiões.

Mas identifica-se alguma culpa, da parte do papa, quando se aceita que ele foi firme demais onde não devia e frouxo onde devia. Ele foi firme na condenação da camisinha e das pesquisas com células-tronco, o que o pôs na contramão da saúde e da ciência. Também carregou a mão na contenção da ala esquerda da Igreja, o que ocasionou divisões que degeneraram em rancor. Foi frouxo para combater, ou até cego para enxergar, os sintomas de apatia e burocratização que contaminam boa parte do clero. Visita-se qualquer cidade do Brasil e é tão comum encontrar igreja fechada e padre ausente quanto porta aberta e pastor vigilante no templo evangélico. Foi frouxo na reação aos escândalos em série de pedofilia que estouraram nos Estados Unidos. É de presumir que em outros países estourassem escândalos de igual intensidade se neles reinasse o mesmo instinto americano para levar essas coisas a sério, litigar e exigir indenização nos tribunais. Há muito se sabe quanto o celibato obrigatório dos padres é flanco aberto para a perversão. João Paulo II fez que não sabia.

Seu pontificado terminou de forma triunfal, com o fenômeno de multidões jamais vistas acorrendo a Roma para os funerais. O que movia essas pessoas? O fervor religioso? Ou o ímã irresistível do pop star? Talvez as duas coisas – e, de novo, as duas coisas atuando muitas vezes em concomitância sobre a mesma pessoa. É uma característica do nosso tempo que os ídolos do rock provoquem, nas multidões, reações parecidas com o transe religioso. João Paulo II inverteu a equação. Era, e continuou sendo, depois da morte, um hierarca religioso – categoria em princípio sóbria e discreta – que provoca reações iguais às que provoca um ídolo pop.

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