Entrevista:O Estado inteligente

sábado, abril 02, 2005

Veja-Entrevista:Jeffrey Sachs

A cura da pobreza

O economista americano diz que,
com a ajuda dos países ricos, é
possível erradicar a miséria do
mundo em duas décadas


José Eduardo Barella

O economista americano Jeffrey Sachs, de 50 anos, ganhou fama como consultor de países em desenvolvimento dispostos a adotar, sob sua supervisão, ajustes duríssimos para ingressar na economia de mercado. Nos anos 80, Sachs ajudou a Bolívia a domar uma hiperinflação de 25.000% e, no início da década seguinte, a Polônia e a Rússia a realizar a difícil transição para o capitalismo. Nos últimos dez anos, Sachs encarou um desafio ainda mais complexo: o de encontrar uma fórmula para eliminar a miséria do mundo. O resultado dessa busca pode ser encontrado em O Fim da Pobreza, seu estudo de 3.000 páginas divulgado no início do ano. O documento, que faz parte de um programa das Nações Unidas, Metas de Desenvolvimento para o Milênio, do qual Sachs é o diretor, detalha uma série de medidas ambiciosas para erradicar a pobreza absoluta até 2025. O plano se apóia na ajuda dos países ricos, que precisariam contribuir com 150 bilhões de dólares por ano, e na premissa de que os recursos não sejam desviados por governantes corruptos nos países necessitados. Na semana passada, de Nova York, onde vive, Sachs concedeu a VEJA a seguinte entrevista.

Veja – Sua missão é ajudar o mundo a acabar de vez com a pobreza. Não é uma luta um tanto quanto quixotesca?
Sachs – Acho totalmente viável erradicar a pobreza, pelo menos em sua forma mais extrema. Ela atinge hoje 1,1 bilhão de pessoas, metade delas na África. São pessoas que vivem com uma renda inferior a 1 dólar por dia sob condições precárias, sofrem de fome crônica e não têm acesso a água potável, assistência médica, educação nem sequer a um par de sapatos. As Nações Unidas têm o objetivo de erradicar a miséria até 2025, ou seja, em vinte anos.

Veja – Como isso será feito?
Sachs – O segredo é realizar investimentos em grande escala nas regiões mais pobres, onde milhares de pessoas sofrem com a falta de controle de doenças, infra-estrutura sanitária precária, baixa produção de alimentos e isolamento geográfico. Precisamos aplicar um método que chamo de "economia clínica". Ele mescla medidas para incentivar o desenvolvimento econômico com tratamentos tradicionais da saúde para prevenir doenças que estão devastando vários países da África, como a aids. Algumas das propostas são simples, como o incentivo ao aleitamento materno. Outras exigem recursos a longo prazo, como o apoio à pesquisa tecnológica. O investimento em saúde não pode esperar. Sem uma população saudável, país nenhum consegue ter crescimento econômico.

Veja – Quanto seria necessário investir?
Sachs – Pelo menos 150 bilhões de dólares por ano, a ser doados pelos países ricos até 2025. É preciso aplicar bem esses recursos. No caso da África, onde a situação é mais crítica, os líderes políticos estão sendo encorajados a pensar de forma realista sobre a extensão da crise. Até agora, esses governos eram advertidos pelos países ricos para não ser ambiciosos no pedido de ajuda. Estamos dizendo o contrário: é preciso, sim, pensar grande nas medidas necessárias para erradicar a miséria de todas as comunidades. Defendo que os países pobres pressionem os ricos por mais auxílio. O primeiro passo é ensinar os países pobres a planejar a maneira de usar o dinheiro doado. Isso é mais importante do que simplesmente abrir a carteira.

Veja – Quais são os países mais generosos com os pobres?
Sachs – Embora os meios estejam disponíveis, os países ricos não se têm mostrado interessados em agir rapidamente. Em 2002, eles concordaram em destinar 0,7% do produto interno bruto de cada um para programas humanitários. Apenas cinco cumpriram o prometido: Suécia, Noruega, Dinamarca, Holanda e Luxemburgo. A boa notícia é que outros seis países anunciaram recentemente um cronograma para se adequar à meta: França, Inglaterra, Espanha, Bélgica, Irlanda e Finlândia. Essas onze nações representam metade do grupo dos países ricos. Os Estados Unidos, infelizmente, continuam de fora. Enquanto uma potência econômica como os Estados Unidos não se engajar na redução da pobreza, nada vai mudar para a população dos países miseráveis.

Veja – Por que os Estados Unidos, que no passado financiaram o Plano Marshall, hoje destinam uma parte pequena de sua riqueza à ajuda internacional?
Sachs – Em parte porque deram milhões de dólares em ajuda a governos corruptos que os apoiavam na Guerra Fria. Com isso, "ajuda externa" tornou-se um palavrão em Washington. O povo americano acredita que seu país dá 5% do PIB em ajuda internacional, quando o valor correto é de apenas 0,15% do PIB – ou 16 bilhões de dólares por ano. É uma ninharia se comparado ao orçamento militar anual dos Estados Unidos, de 500 bilhões de dólares. Seria fundamental que a comunidade internacional explicasse ao presidente George W. Bush que sua política de gastar mais dinheiro com armas do que em ajuda aos países pobres não traz segurança aos Estados Unidos.

Veja – Expandir a democracia e a liberdade no mundo, como prega Bush, ajudaria a reduzir a pobreza e a fomentar o desenvolvimento?
Sachs – O presidente Bush costuma dizer 100 vezes a palavra liberdade antes de mencionar uma única vez a palavra pobreza. A ironia é que existe muita gente vivendo sob liberdade política em países pobres, mas que está morrendo de fome. Isso não torna essas pessoas mais livres nem serve de fator de estabilidade política de nação alguma. Sob pobreza extrema, a democracia se torna frágil e costuma ruir. Por isso, considero equivocada a ideologia de Bush. O conceito de liberdade precisa incluir o incentivo ao desenvolvimento e à luta contra a miséria.

Veja – Perdoar a dívida externa dos países mais pobres não seria mais eficiente do que dar dinheiro?
Sachs – O pagamento dos serviços da dívida da maioria dos países pobres é um dos principais fatores para a falta de dinheiro que eles enfrentam. O perdão à dívida é uma medida necessária e já vem ocorrendo em vários países. O problema é que só isso não basta. Várias nações da África, por exemplo, precisam de um aumento urgente de ajuda financeira. E o volume de dinheiro de que esses países necessitam é superior ao que deixariam de pagar aos credores.

Veja – Como assegurar aos países ricos que a ajuda financeira não vai acabar no bolso de líderes políticos corruptos?
Sachs – É importante deixar claro que essa estratégia não significa assinar um cheque em branco para esses países. A liberação de ajuda financeira deve ser condicionada a projetos detalhados de desenvolvimento nacional, monitorados por organismos internacionais. A ajuda jamais será dada a governantes corruptos. Há países com planos sérios, bem estruturados, que ainda não obtiveram acesso aos recursos porque as nações ricas desconfiam de suas intenções e não cumprem sua parte.

Veja – O senhor poderia citar exemplos de países que souberam usar bem esses recursos?
Sachs – A maioria dos países que tiveram acesso a ajuda financeira nas últimas décadas conseguiu usá-la de maneira eficiente. A ajuda recebida pela China foi decisiva para seu desenvolvimento econômico, embora o montante em recursos não tenha sido elevado. O mesmo ocorreu com a Coréia do Sul. Taiwan também recebeu ajuda dos Estados Unidos no período inicial de sua industrialização. Toda vez que os investimentos são feitos sob supervisão, os benefícios aparecem. O sucesso do Plano Marshall na reconstrução da Europa no pós-guerra é indiscutível. As campanhas de erradicação da varíola na África também foram bem-sucedidas. O problema é que não temos investido dinheiro suficiente.

Veja – O programa Fome Zero, do governo brasileiro, inclui repasse direto de dinheiro para famílias pobres, mas os resultados são pífios. O senhor considera planos assistencialistas eficazes no combate à pobreza?
Sachs – Não conheço o programa Fome Zero em profundidade. Existem várias iniciativas semelhantes de repasse de verba para os pobres que deram certo, como no México. Em outros casos, o investimento em saúde pública e educação trouxe resultados melhores do que a transferência direta de recursos. O importante é que cada nação analise com cuidado as medidas a ser tomadas antes de agir.

Veja – Os Estados Unidos e a União Européia dão subsídios a seus agricultores, o que prejudica países em desenvolvimento, como o Brasil. O fim do protecionismo ajudaria a combater a pobreza?
Sachs – Todos os países que tentaram crescer fechando seu mercado fracassaram. A abertura da economia da China, em 1978, e a da Índia, em 1991, foram fundamentais para o desenvolvimento econômico. Quando os países ricos impõem barreiras comerciais, é natural que as nações em desenvolvimento protestem. O protecionismo na agricultura, em que as tarifas são mais altas, é o pior de todos. O fim dos subsídios aos agricultores americanos e europeus certamente ajudaria o Brasil e a Argentina, que são potências agrícolas exportadoras. Onde o nível de pobreza é realmente calamitoso, no entanto, não faria a menor diferença. Na África, quase não existe excedente agrícola para exportação.

Veja – Há quem acredite que a pobreza, da forma como a conhecemos, surgiu com a Revolução Industrial, quando ocorreu grande migração do campo para as cidades. A miséria é um produto do capitalismo?
Sachs – A pobreza não é um fenômeno da era atual. Antes da Revolução Industrial, há dois séculos, ela já estava presente em todo o mundo. A expectativa de vida era baixa, havia elevado índice de doenças, e a fome castigava regiões inteiras. A Revolução Industrial proporcionou crescimento econômico e avanços tecnológicos importantes. Nos países ricos, a pobreza extrema foi eliminada. Mesmo em países em desenvolvimento, a parcela mais pobre da população teve acesso à infra-estrutura básica. Hoje, a expectativa de vida na maioria deles está na faixa dos 70 anos. Embora o capitalismo tenha produzido desenvolvimento econômico, é verdade que não conseguiu tirar todos os pobres da miséria e tampouco proteger o meio ambiente. Mas seguramente não inventou a pobreza. Na verdade, foi a partir da Revolução Industrial que o mundo começou a discutir seriamente como reduzi-la.

Veja – O senhor concorda com os críticos que dizem que os ajustes estruturais da economia nos anos 80 e 90, preconizados pelos organismos financeiros internacionais, agravaram a pobreza nos países em desenvolvimento?
Sachs – Algumas das medidas eram de fato necessárias, como a abertura da economia e a privatização de estatais. Em certos países, como Índia e China, elas foram o fator decisivo para o desenvolvimento econômico. Os ajustes, porém, não são suficientes se o país permanecer com uma dívida externa elevada ou sob condições frágeis para enfrentar uma instabilidade macroeconômica. As forças de mercado também não bastam para sustentar o desenvolvimento se não houver investimento público em áreas críticas, como infra-estrutura, saúde, educação, pesquisa e tecnologia. Esse foi um dos maiores erros dos países latino-americanos nos últimos vinte anos. Ao contrário dos países do Leste Asiático, eles não fizeram investimento público em pesquisa e ficaram para trás no mercado global de produtos de alta tecnologia.

Veja – O senhor atuou como consultor nos anos 80 e 90 para países em desenvolvimento que passaram por ajustes duríssimos, como Bolívia, Polônia e Rússia. O senhor daria hoje conselhos diferentes a esses países?
Sachs – O foco do meu trabalho na Bolívia, por exemplo, era a estabilização monetária. Em 1985, o país convivia com uma hiperinflação de 25.000% ao ano e uma dívida externa elevadíssima. Felizmente, consegui controlar a inflação e renegociar parte da dívida. Não pude me ocupar de outros problemas graves do país, como o combate à pobreza – e, sinceramente, nem tinha conhecimento suficiente naquela época para avançar nessa área. Hoje tenho uma visão mais ampla sobre o assunto e certamente priorizaria medidas para acabar com a miséria.

Veja – O senhor usa estatísticas para mostrar que a riqueza do mundo aumentou entre 1820 e 2000, mas, nos países pobres, o que cresceu foi a pobreza. Por quê?
Sachs – A renda per capita mundial cresceu mais, proporcionalmente, do que a população do planeta nesse período. A questão é por que alguns países ficaram para trás. A resposta não é simples. A África, por exemplo, concentra todos os problemas numa única região. O continente é vulnerável a secas prolongadas e o solo está esgotado, o que dificulta a produção de alimentos. As distâncias significam altos custos de transporte e aumentam o isolamento econômico. Há também uma história trágica de exploração colonial e escravidão. Com isso, chegou aos tempos modernos com uma infra-estrutura precária e uma taxa elevada de analfabetismo. Tudo isso espanta os investidores externos.

Veja – Qual foi a situação mais impressionante de miséria que o senhor presenciou?
Sachs – A crise da saúde na África, sem dúvida. Tive um choque muito grande ao entrar pela primeira vez num hospital e ver tanto sofrimento com doenças que poderiam ser evitadas. Bastaria adotar em larga escala medidas de eficácia comprovada, de custo muito baixo, que salvariam milhares de vidas por ano. Estou me referindo a campanhas de prevenção de doenças sexuais, como a aids, e à distribuição de mosquiteiros para evitar a malária.

Veja – O senhor espera ser lembrado um dia como o economista que erradicou a pobreza do mundo?
Sachs – Gostaria que a minha geração, e não apenas eu, ficasse marcada como a que lutou para acabar com a pobreza. Acho que isso é possível, mas não pode ser o trabalho de um homem só. Tem de ser um esforço coletivo.

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