Entrevista:O Estado inteligente

domingo, abril 10, 2005

Merval Pereira:Fisiologismo revisitado

Ao contrário da maioria da opinião pública, que revela crescente descrença na atividade política e uma percepção de que o fisiologismo domina essa atividade, os cientistas políticos mais destacados do país são unânimes em ter uma visão bem menos pessimista da atuação do Congresso.

A própria eleição à presidência da Câmara do deputado Severino Cavalcanti, um político que se firmou no chamado baixo clero pelo corporativismo, sempre ligado a práticas políticas clientelistas, é analisada não apenas pelo que significa de retrocesso, mas pelo desejo de afirmação da classe política diante do centralismo decisório do Executivo.

Os especialistas começam pela discussão do que seja fisiologismo, e Jairo Nicolau, do Iuperj, diz que o termo, assim como populismo, é pejorativo e serve para desqualificar os adversários, mas não para uma análise objetiva. Já Octávio Amorim Neto, da Fundação Getúlio Vargas, lembra que a definição do dicionário, de que fisiologismo é uma atitude ou prática caracterizada pela busca de ganhos ou vantagens pessoais, em lugar de ter em vista o interesse público,“é tão ampla que quase toda atividade política pode ser taxada de fisiológica”.

Fabiano Santos, presidente do Iuperj, diz que em um país federativo, de proporções continentais, como é o caso do Brasil, “dificilmente questões locais deixariam de pesar de forma significativa nos acordos políticos. Neste sentido, o fisiologismo é fator inarredável da política brasileira, e não apenas do governo FH ou do governo Lula”. Para ele, porém, “o fisiologismo não impede a discussão de questões nacionais”.

Eles concordam que distribuir cargos faz parte de qualquer governo, como lembra o cientista político Sérgio Abranches. Segundo ele, nos EUA, uma troca de partido na Presidência representa uma troca de titulares de cerca de 20 mil cargos. Na Europa, nos governos de coalizão há distribuição de cargos também. “As pessoas buscam o poder pelos cargos em si ou para poder formular e implementar políticas públicas. É assim em qualquer democracia”, reforça Abranches.

Tenho a impressão de que a percepção popular de que no governo petista existe mais fisiologismo do que nos demais, o que não é verdade segundo os estudiosos, estabeleceu-se porque os próprios petistas, no afã de dominar os cargos mais importantes, são os primeiros a desqualificar os candidatos dos partidos aliados, criando um clima negativo em torno das reivindicações de partidos como o PP, o PTB e o PMDB, que têm a imagem de clientelistas grudada na pele não sem razão.

No entanto, como lembra o cientista político Fernando Limongi, presidente do Cebrap, mesmo que esses partidos tenham uma prática fisiológica, o preço que cobram é sempre muito pequeno porque não têm outra alternativa a não ser o governo. Se tivessem perspectiva de poder, poderiam ficar na oposição à espera, como fez o PT anteriormente, e agora fazem o PSDB e o PFL. Mas os partidos menores são satélites e se acomodam sempre em torno do poder, perdendo, portanto, força de barganha.

Além de o próprio PT ampliar as críticas, os partidos aliados aumentam suas reivindicações em público para se valorizar, analisa Limongi, o que amplifica a sensação de fisiologismo. O fato é que o PT está tendo que negociar com os mesmos obscuros agentes que fazem a política do dia-a-dia do Congresso, o tal baixo clero. Mas o faz de maneira tão mesquinha, guardando o melhor bocado para os seus e as migalhas para os aliados, que não esconde a aversão que lhe dá esse tipo de contato.

Foi esse sentimento de ser um convidado de segunda classe para a festa petista, e a compreensão de que sem seu apoio a festa não se realiza, que fez com que a revolta do baixo clero levasse à presidência da Câmara dos Deputados em Brasília um legítimo representante seu. Enquanto os partidos aliados reclamam cargos e nomeações nos escalões secundários do governo, o festival de nomeações de sindicalistas para as diretorias e os conselhos de estatais como Petrobras, Itaipu e Chesf tem o mesmo sabor de pecado das nomeações fisiológicas atribuídas ao PFL, ao PMDB e ao PP em outras administrações, tão denunciadas pelo próprio PT.

Uma das maiores mordomias existentes, a presidência do Serviço Social da Indústria (Sesi), que já serviu de base para políticas liberais, serve agora de consolo e base política ao sindicalista sem votos Jair Meneghelli, com um salário três vezes maior que o do presidente e um orçamento de fazer inveja ao mais fisiológico dos burocratas. Outro quinhão do poder com caixa avantajado é o Sebrae, que foi dado de presente a Paulo Okamoto, antigo tesoureiro do PT, amigo tão íntimo de Lula, que é quem faz suas declarações de Imposto de Renda.

O sociólogo Francisco Oliveira, professor da USP e petista histórico em dissidência aberta do governo, foi o primeiro a registrar que a elite do sindicalismo passou a constituir uma nova classe social, ao ocupar posições nos conselhos de administração dos principais fundos de pensão das estatais e do BNDES. Só a Previ tem hoje mais de 200 cargos nos conselhos das maiores empresas do país. O cientista político Jairo Nicolau chama de patronagem essa prática que, segundo ele, “existe em maior ou menor grau em todos os governos democráticos. A contrapartida de quem tem cargos é garantir apoios”.

Para Octávio Amorim Neto, uma prática política corresponde realmente ao fisiologismo: a nomeação de parentes para cargos públicos com o fim único, mas jamais admitido abertamente, de se aumentar a renda familiar daquele que nomeia ou daquele que é nomeado. A partir da avaliação de Amorim Neto, pode-se concluir que muito da percepção de que vivemos afogados em clientelismo deve-se à defesa aberta do atual presidente da Câmara do nepotismo, refletindo uma posição majoritária dentro do Congresso.



Toda vez que existe uma votação importante no Congresso, há também uma corrida de deputados e senadores ao Palácio do Planalto em busca da liberação de verbas contingenciadas do orçamento federal. Esse “é dando que se recebe”, expressão de São Francisco de Assis utilizada no contexto da troca de votos por verbas pelo então deputado paulista Roberto Cardoso Alves, dá à opinião pública uma péssima impressão da relação entre os congressistas e o Executivo, ampliando a sensação de que o fisiologismo impera no governo federal.

Mas não é assim que os cientistas políticos vêem o panorama político, pelo menos não de uma maneira tão radical. O cientista político Amaury de Souza lembra que esse processo de contingenciamento de verbas para emendas parlamentares foi aperfeiçoado no governo Fernando Henrique, transformando-se no principal instrumento de controle das votações no Congresso: “Você transforma algo que é legal, num mecanismo de disciplina de voto. Hoje é o principal mecanismo que o governo tem. Estimula o fisiologismo apenas indiretamente, porque você não está dando dinheiro para ninguém, está apenas deixando de dar dinheiro a quem não vota com você”, analisa Souza.

Ele diz que é possível achar-se que isso é uma deformação do funcionamento da democracia, “mas não tem fisiologia a rigor. A verba que é distribuída é legalmente votada. É simplesmente o uso, pelo Executivo, de um poder constitucional”. Amaury de Souza diz que, na verdade, houve um decréscimo razoável da fisiologia na atuação do Congresso.

“Se você pensar como era o processo de formação do orçamento até o escândalo dos anões, houve um ganho enorme”, diz ele, referindo-se à crise política gerada pela descoberta de um esquema fraudulento de distribuição de verbas na Comissão Mista de orçamento do Congresso em 1993. “Os controles que o Ministério da Fazenda passou a fazer, e o do Planejamento também, desde o governo de Fernando Henrique, reduziram muito o espaço. Também a Comissão Mista de Orçamento melhorou muito, houve um amadurecimento importante”.

Já Fabiano Santos, diretor do Iuperj, diz que o uso das verbas para coordenar apoio no Legislativo pode ser considerado fisiologismo na medida em que estas verbas dizem respeito a políticas de alcance apenas local — o que deve ser considerado como inevitável em nossa política. “O importante é que esta utilização não seja feita de tal modo a inviabilizar a agenda nacional — que, obviamente, também é vital para o processo democrático”.

Santos ressalta que a distribuição de verbas era procedimento normal durante a República de 46, “mas nesta época o Congresso tinha maior poder de alocação do que hoje em dia. Por isso, foi considerado à esquerda e à direita como obstáculo à racionalidade econômica e às reformas estruturais”. Segundo sua análise, “a Constituição de 88 não desconcentrou inteiramente os poderes orçamentários conferidos ao Executivo durante o período militar, mas o Legislativo tem lutado para retomar o equilíbrio existente durante a República de 46, e o orçamento impositivo é reforma fundamental desta trajetória”. Para Fabiano Santos, o fato de já existir hoje em dia uma cultura bem estabelecida de equilíbrio fiscal “nos tranqüiliza diante da hipótese de redistribuir ao Congresso maiores poderes de alocação orçamentária”.

O cientista político Sérgio Abranches, analisando a relação entre o Executivo e o Legislativo, diz que no Brasil “há certamente um viés forte para os cargos, em detrimento das políticas públicas”. Ele atribui isso à crise fiscal do estado, que se iniciou ainda na ditadura, fazendo diminuir a eficácia das políticas. “Aqui, existe uma defasagem tão grande entre as necessidades e expectativas da população e a capacidade de provisão dos governos, nos três níveis, que é certo que todo governo, ao final, terminará em frustração de uma grande parcela da população”, constata Abranches.

Ele diz que “se não é possível satisfazer substantivamente essas necessidades e expectativas, dando-lhes soluções estruturais e duráveis, cria-se o incentivo para a política de privilégios, favores, de atendimento àquela parcela crítica para a eleição de cada político e o sistema perde a visão de política pública ( policy view)”. Sendo assim, Sérgio Abranches diz que cabe ao Executivo “ter o controle do processo legislativo e uma agenda substantiva consistente, para ele também não perder a visão das políticas públicas e, portanto, a visão estratégica e ficar emaranhado na conjuntura”.

É nesse contexto que o contingenciamento de verbas entra, como “uma condicionante derivada da crise fiscal e, pelas mesmas razões, aumenta a propensão ao clientelismo e à política de favores”. Por outro lado, no entanto, “permite ao Executivo manejar as ‘torneiras do orçamento’, transformando a liberação de verbas e de emendas parlamentares em instrumento de controle do processo legislativo e de gestão da coalizão”. Sérgio Abranches diz que o mecanismo “é politicamente funcional e programaticamente deletério”.

Jairo Nicolau, do Iuperj, tem uma visão crítica sobre a liberação dos recursos aprovados nas emendas orçamentárias dos deputados. Segundo ele, nesses casos “a chantagem tem duas vias: dos deputados antes das votações, e do governo, após a liberação. A confiança é assegurada no tempo e é difícil saber quem se beneficiou (ou quebrou o pacto de apoio) primeiro”. Ele considera o sistema “complexo” e ressalta que exige “uma sofisticada coordenação política para operar”. Na sua análise, Fernando Henrique “operou bem até perder o PFL, e Lula até perder o José Dirceu. É um equilíbrio tênue, mas é assim que tem sido. É assim que o presidencialismo tem funcionado no país”.

Jornal O Globo -

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