O GLOBO - 04/03/11
O diretor-gerente do FMI, Dominique Strauss-Kahn, acha que em relação aos recentes levantes da África o mundo deve primeiro comemorar o grande passo à frente em termos de liberdade, e só depois se preocupar com o impacto dos eventos na economia global. Strauss-Kahn fez ontem uma rápida visita ao Brasil e eu o entrevistei. Ele acha que o país corria risco de superaquecimento da economia.
Strauss-Kahn pode vir a ser candidato à presidência da França em 2012. Mas não adianta perguntar isso. Ele corta com uma resposta seca:
- Atualmente, sou o diretor-gerente do FMI e trabalho apenas nisso e só isso me interessa.
O Fundo, que encarnava o bicho-papão durante os anos 1980 na crise da América Latina, foi o primeiro a mandar os governos aumentarem os gastos na época da crise financeira. A crise mundial de 2008 fortaleceu o FMI, que já parecia sem uma função, mas revelou ao mundo sua contradição: tolerância com os enormes déficits públicos dos países ricos.
Dominique Strauss-Kahn me disse, na entrevista que fiz com ele para o Espaço Aberto da Globonews, que eu deveria perguntar aos cidadãos da Grécia ou da Irlanda, que estão nas ruas em protesto contra o FMI, se o Fundo agora é moderado nas suas cobranças:
- O papel do FMI foi completamente renovado. Durante a última década, o senso comum era que o FMI não era mais necessário. Na crise, houve necessidade de coordenação do estímulo e o FMI era a melhor instituição para fazê-lo. As pessoas perceberam que somos uma espécie de bombeiro. Quando não há um incêndio, diz-se que é inútil, mas quando o incêndio retorna, fica-se muito feliz em ter o bombeiro.
Ele argumenta que a diferença é que agora o Fundo sugeriu que países que tivessem margem de manobra aumentassem os gastos para evitar uma nova grande depressão:
- Tivemos sim uma crise, mas não tão séria como a Grande Depressão. Por quê? Porque muitos países fizeram o que o FMI pediu, que foi ter um estímulo, inclusive o Brasil. Para alguns países era impossível porque eles já estavam à beira do precipício.
Perguntei sobre a situação brasileira: gastos públicos altos, inflação subindo e uma das mais altas taxas de juros do mundo:
- A América Latina passou bem pela crise. Esse foi o caso do Brasil. Agora, há dois riscos. O primeiro é o do superaquecimento. Esta manhã, os dados oficiais para 2010 foram divulgados, crescimento de 7,5%, o melhor resultado em 25 anos. Isso é fantástico, mas é hora de desacelerar. Por isso, é preciso uma política fiscal mais rígida. O problema estrutural do Brasil é a falta de poupança, tanto pública quanto privada. O segundo risco para a maioria das economias na América Latina é o crescimento em que as desigualdades aumentam. É preciso retirar as pessoas da pobreza, como tem acontecido com o Bolsa Família no Brasil. Se esses dois objetivos forem alcançados ao mesmo tempo, então o futuro do país será promissor.
Perguntei se o relaxamento monetário dos EUA não era a velha prática de imprimir moeda, e se era justo que a política monetária deles criasse desequilíbrios em países como o Brasil, como a supervalorização da moeda:
- O problema é o seguinte: estamos em um mundo onde os diferentes países tentam encontrar solução própria para o problema global, e isso é ruim. Não existe uma solução doméstica para um problema global e essa é uma das lições desta crise. Você está certa ao dizer que a maneira que os EUA tentaram alavancar o crescimento, por meio do relaxamento monetário, pode ter efeitos sobre o resto do mundo. Por outro lado, se os EUA não crescerem, os efeitos sobre o resto do mundo serão ainda piores.
Ele admitiu que a moeda chinesa está desvalorizada mas acredita que é um erro achar que todos os problemas do mundo vão desaparecer se o valor do iuan for corrigido:
- Se você tivesse, ou eu tivesse, ou o FMI tivesse uma varinha mágica ou uma bala de prata para mudar o valor da moeda chinesa da noite para o dia, isso realmente ajudaria, mas não resolveria a situação de desequilíbrio.
Para o diretor do FMI, a globalização não é mais apenas um tema para livros e teses:
- Acredito que um indivíduo em São Paulo ou em Londres ou em Déli, na Índia, entendeu, com a crise, que a globalização é uma realidade. Pode-se gostar ou não, mas é a realidade.
Neste contexto foi que perguntei sobre a crise da África e o risco de adiar a recuperação global:
- Antes da questão da incerteza econômica, é um avanço importante em direção à liberdade e é isso que devemos comemorar e tentar ajudá-los. É claro que existem consequências econômicas para os próprios países e para a economia global. O canal de transmissão é o preço da energia. Depende da duração.
Perguntei se é justo banqueiros fazerem tudo que quiserem impunemente:
- Bancos podem falir. Resgatam-se bancos para proteger o sistema financeiro e as economias das pessoas. Então acredito que foi correto socorrer o setor financeiro. Ao mesmo tempo, é preciso tributar o setor financeiro para criar um fundo. Socorrer os bancos e depois assistir aos banqueiros receberem enormes bônus é um escândalo.
Ele acha que os países mais frágeis da Europa, como Grécia e Irlanda, conseguirão evitar a moratória da dívida externa pública.
Não chegou a ser gravado, mas perguntei a ele sobre o relatório do escritório de avaliação independente do FMI criticando a atuação do Fundo por não prever a crise mundial. Ele respondeu que se tivesse escrito o relatório teria sido ainda mais duro.
Entrevista:O Estado inteligente
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