Entrevista:O Estado inteligente

domingo, março 20, 2011

FERREIRA GULLAR O trinado do passarinho

FOLHA DE SÃO PAULO - 20/03/11

Ao passar a gravação para o disco, verificou ter captado um passarinho
e, então, decidiu destruí-lo

ELE É um excelente e raro poeta, que terá escrito uns 20 poemas em
toda a sua vida. Sou certamente o único amigo que possui no mundo. Tem
alguns parentes, filhos de uma irmã já falecida.
Como herdou dos pais alguns bens, esses parentes tentaram obter um
diagnóstico médico para considerá-lo louco e, portanto, incapacitado
para gerir a herança da família. Ele percebeu o golpe, fugiu de casa e
nunca mais apareceu. Mudou-se para Lisboa, onde viveu alguns anos, e
depois voltou, na moita, de modo que, para os parentes gananciosos,
ele deve ter morrido.
Na verdade, reside, faz alguns anos, num pequeno apartamento no centro
do Rio, num prédio onde só há escritórios e firmas comerciais. Ninguém
sabe quem ele é nem o que faz. Com o resto do dinheiro, comprou um
terreno em Magé, no Estado do Rio, e o doou à prefeitura para que
instalassem ali um clube esportivo para meninos pobres, com campos de
futebol e quadras de tênis.
A prefeitura aceitou a doação e nada fez. Agora ele está tentando
anulá-la para entregar o terreno ao governo do Estado, a fim de ali
construir escolas e moradias para desabrigados. O processo burocrático
está em marcha; marcha lenta, claro.
Quando o conheci, em 1952, na casa de Mário Pedrosa, ele era
funcionário do Centro Psiquiátrico Nacional, do Engenho de Dentro,
onde ajudou a dra. Nise da Silveira em seus ateliês de terapêutica
ocupacional. Se não me enganou, quem o levou a Mário Pedrosa foi Almir
Mavignier, braço direito de Nise. Ele escrevera já então os poucos
poemas que constituem a sua obra poética.
Tornamo-nos amigos e vagabundávamos pelo centro do Rio, frequentando o
Vermelhinho e os botecos da Lapa, em companhia de Oliveira Bastos,
Carlinhos de Oliveira e Amelinha, que era pintora e minha namorada.
Publicou uma plaqueta de 34 páginas e distribuiu a reduzidíssima
edição entre escritores indicados por mim. Um dos poemas dizia:
"Tapei a flor na noite
e os dias se esconderam.
Descabida metade das partes
relâmpago das cores".
Mas eis que ele, dias depois, aparece no Vermelhinho com um exemplar
de seu livro, abre-o, estica com a unha da mão a linha que prendia as
páginas, e afirma: "Isto vai arrebentar e misturar os poemas,
quebrando a ordem em que estão. Vou recolher todos os exemplares e
queimá-los. O teu está aí contigo?". Respondi: "O meu você não vai
queimar coisa nenhuma". E o tenho guardado até hoje.
Pouco depois, decidiu gravar os poemas num disco. Usou um gravador do
Centro Psiquiátrico e, de manhã bem cedo, fez a gravação. Sucedeu que,
ao passá-la para o disco, verificou ter o gravador captado o trinado
de um passarinho e, então, decidiu destruí-lo. Tentei dissuadi-lo,
mas, para minha surpresa, no dia seguinte, ele me procurou para me
informar que o trinado do passarinho enriquecera a gravação.
Editou então um álbum com o disco e me deu um exemplar que guardei até
que meus filhos, brincando, o inutilizassem. Sobrou o álbum vazio.
Ele tem hoje 84 anos e, de vez em quando, aparece em minha casa. Outro
dia, surgiu sem me avisar, sentou-se diante de mim e me perguntou se
ainda tinha o disco com o trinado do passarinho. Respondi que tinha
apenas o álbum vazio, onde estão impressos os poemas do disco. Ele,
então, me informou que viera com o propósito de destruir o disco, mas,
como este já não existia, destruiria o álbum. Tomei-o de suas mãos e
disse-lhe que não ia destruir álbum nenhum.
Ele empalideceu, me olhou nos olhos e afirmou: "Você não tem o direito
de me impedir. Os poemas são meus, o álbum é obra minha. Esses poemas
não correspon- dem mais ao que considero minha poesia".
Tentei explicar-lhe que a nova edição que fizera dos poemas, em 1990,
já deixava claro que sua visão sobre seus poemas mudara, uma vez que
excluíra dela aqueles que não considerava perfeitos, à altura de sua
exigência. De nada adiantou. Acusou-me de adotar uma atitude
autoritária em vez de agir como amigo e foi embora muito zangado. Essa
zanga passa, pensei comigo, sorrindo. Abri o álbum e li:
"O indivíduo estava no chão
e a pose passeava na forma".

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