Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, março 17, 2011

Roberto Macedo Um filme ruim só no título

O Estado de S. Paulo - 17/03/2011

Refiro-me a Trabalho Interno, um documentário sobre a crise financeira
que em 2008 eclodiu nos EUA, e que ganhou o último Oscar nessa
categoria. O título é tradução inadequada de Inside Job. Ficaria
melhor Por Baixo do Pano, pois o filme é centrado em decisões no
círculo íntimo do governo, suspeitas em sua legalidade e não
convincentemente esclarecidas pelos que participaram delas.

Ele é árduo para não economistas e para aproveitá-lo melhor é preciso
um mínimo de informações sobre a papelada financeira subjacente à
crise. Para estimular o leitor a assistir ao filme inicialmente
procurarei sintetizá-las, limitando-me a papéis com origem em
financiamentos imobiliários. Também abordarei a frágil regulamentação
do mercado financeiro e alguns personagens envolvidos.

Bancos de investimento e outros entes financeiros adquiriam créditos
hipotecários que instituições especializadas nesses financiamentos
tinham a receber. Para seu próprio financiamento e ganhar com a
intermediação os adquirentes usavam tais créditos como garantia de
papéis, conhecidos como CDOs (Collateral Debt Obligations), que
vendiam a investidores, como fundos de pensão. Para a instituição que
cedia os créditos isso permitia novos financiamentos. Ao mesmo tempo,
seguradoras ofereciam outro papel, o CDS (Credit Default Swap), em
tese uma forma de proteção contra a inadimplência dos devedores
originais. O esquema foi montado de modo a garantir bons rendimentos a
investidores e emissores dos dois papéis. Em particular, as
instituições financeiras citadas e seus executivos ganhavam fortunas à
medida que a papelada aumentava.

Dada a frágil regulamentação do mercado, no processo houve forte
aumento da alavancagem, ou seja, da proporção entre o valor das
operações realizadas relativamente ao capital próprio das instituições
(ir)responsáveis pela papelada, fragilizando-as para enfrentar riscos
que se materializassem. A ganância inconsequente ocorria sob a bênção
de agências de classificação de riscos, que avaliavam as garantias
originais, isto é, as hipotecas de imóveis, em que se sustentavam os
CDOs.

O (des)arranjo também se apoiava na pregação de economistas acadêmicos
e de banqueiros que diziam ser esse quadro benéfico não só para o
desenvolvimento do mercado, como para o da economia. E, ainda, que o
mercado era operador eficiente de toda essa intermediação.

A edificação começou a ruir na base, com uma agravada inadimplência
dos adquirentes de imóveis financiados. Na outra ponta, investidores
em CDOs queriam seu dinheiro de volta e compradores de CDSs não
conseguiam receber das seguradoras os valores devidos.

Quando veio o colapso, alguns bancos quebraram, e o governo e seu
banco central vieram com dinheiro para remediar perdas e socorrer
outros bancos. No filme, tem destaque o fato de o sistema financeiro,
que armou toda a encrenca, não ter sofrido punição governamental pelas
suas artes. Ao contrário, houve instituições que com o socorro
preservaram seus ganhos, logo mostrando novos lucros, e recompensando
regiamente seus executivos que arquitetaram o desastre.

No socorro houve uma operação particularmente cinzenta, a assegurada à
seguradora AIG, que não honrava seus CDSs. Nesse caso, um banco que
apostara fortemente na inadimplência dos devedores de financiamentos
imobiliários, o Goldman Sachs, foi particularmente beneficiado, pois o
socorro lhe permitiu conseguiu resgatar seus CDSs pelo valor de face
integral. Ou, como se diz lá, na base de 100 centavos (de dólar) por
dólar desse valor.

Bem, aí entra um dos grandes personagens, pois na montagem do socorro
estava um que no passado havia sido presidente do Goldman Sachs, o
ministro da Fazenda ao final do governo Bush, Henry Paulson.
Gaguejando, defendeu-se quando depôs no Congresso, sempre afirmando
que o socorro evitou uma quebradeira ainda maior. Mas ficou a sensação
de que um resgate de CDSs por menos centavos por dólar de seu valor de
face também poderia ter resolvido o problema, mas trazendo alguma
punição para o banco. O filme sugere que algumas operações que
descreve caracterizariam crimes.

O próprio presidente Barack Obama não se sai bem na história. Depois
de pregar mudanças antes de eleito, as que vieram no caso foram
consideradas frágeis. Alguns personagens antigos até voltaram à cena
na sua equipe, como o ex-reitor de Harvard, o professor Larry Summers,
um dos atores na desregulamentação do mercado.

Do lado dos que previram o desastre, o filme menciona o pouco
conhecido Raghuram Rajan, que em 2005, como economista-chefe do FMI,
escreveu artigo nessa linha, apresentado em reunião de figurões do
mercado financeiro, presentes o mesmo Summers e o presidente do banco
central americano, Alan Greenspan. Entretanto, quem se tornou mais
conhecido foi Nouriel Roubini, que começou sua advertência um ano
depois. Ambos aparecem no filme.

Acadêmicos que antes da crise se destacaram como pregadores da
desregulamentação do mercado não se saem bem no enredo, que levanta
uma questão ética ao apontar um relacionamento promíscuo entre a
academia e o setor financeiro, além do tradicional entre o mesmo setor
e equipes econômicas governamentais. Entrevistado, o chefe do
Departamento de Economia de Harvard, John Campbell, concluiu
gaguejando, quase mudo, e lembrando outro filme premiado, O Discurso
do Rei, antes de seu final feliz.

Um economista famoso, John Keynes, numa frase muito citada, afirmou
que "homens práticos, que se acham isentos de qualquer influência
intelectual, são usualmente escravos de algum economista já falecido
ou aposentado". O que o filme também mostra é que financistas
praticantes trabalharam com economistas muito vivos. Ou ingênuos de
enorme utilidade.

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