O poder das coisas suplanta o poder das ideias. A hipótese pode
parecer um disparate. Inserida, porém, no bojo da sociedade
contemporânea - emoldurada pela expansão econômica, despolitização,
pelo esfacelamento de doutrinas, luta por interesses setoriais e
grupais, administração de coisas materiais -, começa a ganhar sentido.
O território da política é o que mais sofre os efeitos dessa nova
ordem. E a razão é a crise que assola o modelo de representação. O
declínio dos partidos corrói a imagem dos mandatários e faz nascer
múltiplos aglomerados, os quais, por sua vez, procuram substituir a
esmorecida instituição política. E por que esta definha? Porque a
democracia deixou de cumprir seus compromissos para com a sociedade,
como ensina Norberto Bobbio. A descrença no sistema representativo faz
emergir polos de agregação e contestação fora do Parlamento. Nesse
vácuo desponta uma nova designação na fisionomia das nações
democráticas: democracia supletiva. A expressão, adotada pelo
sociólogo Roger-Gérard Schwartzenberg e que indica a existência de uma
subestrutura em auxílio à democracia representativa, cobre a
constelação de entidades que fazem micropolítica, a política do
varejo, das pequenas coisas.
Como se avalia a força desse fenômeno entre nós? Pela composição da
organicidade social. Tanto sob a dimensão vertical (classes sociais,
grupos e categorias profissionais) quanto sob o prisma
horizontal/espacial (regiões centrais e periféricas), espraia-se
vigorosa onda formada por entidades focadas na intermediação de
interesses: associações, sindicatos, federações, clubes, núcleos,
movimentos, etc. Na esfera das nações, o Brasil desponta com um vasto
território coberto pela democracia supletiva. Dispomos de uma rica
moldura de entidades. Algumas instâncias são bem aparelhadas, a
mostrar grupos atuantes, seja nas retaguardas corporativas - defesa de
interesses de setores negociais -, seja na vanguarda da cidadania, que
abriga o debate sobre temáticas coletivas, como sustentabilidade,
igualdade de gêneros, luta contra as drogas, proteção da criança e do
adolescente, segurança pública, entre outras. O que chama a atenção na
teia organizativa é o poder de mobilização de certos núcleos,
particularmente os que atuam na base da pirâmide social, hoje mais
parecida com um losango. Temos, já, 101 milhões de brasileiros na
classe média.
Sob esse olhar, surge a primeira observação: a massa laboral detém,
hoje, maior poder de barganha e pressão do que o eixo empresarial. É
patente o esmorecimento das tradicionais entidades empresariais, como
Confederação Nacional da Indústria (CNI), federações de indústrias,
associações comerciais e outras. No passado, definiam rumos da
economia. Hoje, mais parecem leões desdentados. Cedem espaço às
associações das cadeias produtivas, que, estas, sim, assumem funções
políticas nas frentes institucionais. Já as bases laborais urbanas
atingem o clímax de sua força, a partir do ciclo Lula e da legalização
das centrais sindicais. Endinheiradas e prestigiadas, essas entidades
dão o tom em múltiplos espaços da administração pública. Dirigem a
orquestra das relações do trabalho. O capital praticamente não apita
em matéria de política trabalhista. Os trabalhadores rurais, por sua
vez, não dispõem de um sistema de interlocução tão contundente quanto
o dos conglomerados urbanos. Sua imagem, ademais, é embaciada pela cor
vermelha das bandeiras do Movimento dos Sem-Terra, que, mesmo
desprestigiado, encampa a agenda rural. Já a representação empresarial
do campo expressa discurso mais harmônico que a urbana. Sua imagem,
porém, resvala pelo extremo conservadorismo.
Ainda na parte inferior da pirâmide/losango, formam-se as associações
de bairros, que atuam de maneira pragmática na arena institucional,
funcionando como extensões da representação política. As questões
locais entram no menu servido aos políticos. Nesse vasto território, e
até mais em cima, assumem destaque as vertentes religiosas, que, ao
lado da defesa de crenças e dogmas, também começam a vestir cores
políticas. Passam a entoar o canto geral dos anseios coletivos, como a
defesa do meio ambiente, que, por sinal, é o tema deste ano da
Campanha da Fraternidade, patrocinada pela Igreja Católica. Igrejas e
credos desenvolvem, à sua maneira, a democracia supletiva. E saindo da
base para o meio, expande-se a vasta cadeia organizativa sob a qual se
abrigam profissionais liberais, habitantes do centro e do topo da
pirâmide. Trata-se de uma rede corporativa com poder de persuasão e
forte articulação junto às instituições políticas, posição que lhe
garante escudo normativo. Mas a influência midiática dos polos
centrais acaba se diluindo nos variados compartimentos que conduzem as
demandas de cada grupamento.
O contingente jovem, que se retraiu após a mobilização dos
caras-pintadas da era Collor, recomeça agora a se fazer presente nas
ruas, sendo esta a boa novidade na paisagem de nossa democracia
supletiva. O mais recente movimento dos jovens, em São Paulo, fazendo
pressão contra o aumento da passagem de ônibus, aponta para o
despertar de segmento considerado transcendental para a vivificação de
nossa democracia. Eventuais mobilizações que ocorrem no território são
motivadas, porém, menos em defesa de ideários e mais por proteção ao
bolso. Os jovens continuam apartados da esfera de participação
política.
Por último, ressaltam as correntes que se formam em defesa da
igualdade de gêneros e raças, algumas responsáveis pelas maiores
concentrações de massa no País, como a Parada Gay de São Paulo.
Nossa democracia supletiva tende a se expandir, no bojo da
conscientização social, da expansão econômica, da melhoria de padrões
de vida e do declínio dos mecanismos clássicos da política, como
doutrinas, partidos, Parlamentos e oposições. A perspectiva é
alvissareira. Afinal, esse é o oxigênio que vivifica todos os poros do
corpo social.
JORNALISTA, É PROFESSOR TITULAR DA USP E CONSULTOR POLÍTICO E DE COMUNICAÇÃO.