O Estado de S.Paulo - 13/03/11
A expressão "pós-Lula", por estranho que pareça, causa desconforto e mesmo irritação a muitos adeptos do lulopetismo. A princípio, não deveria ser assim. Afinal, é um fato inegável que "o cara" não é mais de jure e de facto o presidente da República há exatos dois meses e treze dias. Nesse sentido, a expressão "o pós-Lula" poderia, e deveria, ser entendida apenas como uma forma abreviada, e portanto melhor, de se referir ao "período que se segue ao término dos oito anos da administração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva". Simples assim. Factual e incontroverso, não?
Não, dizem lulopetistas que respeito. E é importante, a meu ver, tentar entender suas razões. Primeiro, porque veem no uso da expressão "pós-Lula" disfarçada ironia e inconfessáveis propósitos políticos, todos expressando veladas expectativas e obscuros desejos de que o ex-presidente pudesse "sair de cena", privando a sociedade brasileira de sua marcante presença, de seus conselhos, opiniões e lições de vida.
Vale lembrar que foi isso o que fez em 2003 o então - como ainda hoje - estrategista-mor do petismo (J. Dirceu), reagindo a um comentário público do então ex-presidente Fernando Henrique Cardoso: "Ele deveria estar calado em casa, de pijama e chinelos cuidando dos netos". Que eu tenha tomado conhecimento, ninguém sugeriu o mesmo a Lula. Que, por sinal, disse mais de uma vez que iria mostrar a todos "como deve se comportar um ex-presidente quando desencarna". Deixo ao eventual leitor imaginar a qual (ou a quais) ex-presidente(s) se referia Lula.
Há uma segunda razão para o desconforto e a irritação com a expressão "pós-Lula", por vezes interpretada como uma tentativa de excluir do rol das possibilidades futuras "o retorno" de Lula à Presidência da República em 2014 ou 2018 - o que exigiria sua constante presença e visibilidade nos meios de comunicação. Essa possibilidade de retorno certamente existe tanto para o principal estrategista do lulismo (o próprio Lula) quanto para o estrategista-mor do petismo. Tanto é assim que um dos mais fiéis escudeiros do ex-presidente, hoje ministro importante do governo Dilma Rousseff, já disse em entrevista que se a presidente Dilma fizer um bom governo será candidata à reeleição. Se não, o lulopetismo deverá ter Lula de volta em 2014 (ou 2018). Como falar em pós-Lula nesse contexto?
Há uma terceira, e talvez mais importante, razão para o desconforto e a irritação com o uso do termo "o pós-Lula": a visão de que este teria o propósito de tentar "desconstruir" o governo Lula, chamando a atenção para alguns de seus legados e heranças mais problemáticos. A administração da presidente Dilma Rousseff estaria obrigada - ainda que pisando em ovos - a lidar com tais legados e heranças nos primeiros meses e anos de seu mandato.
A nova presidente começou bem seu governo em algumas áreas, marcando claramente - falemos com franqueza - suas diferenças com a herança recebida dos anos Lula. Dois exemplos, visíveis a olho nu: primeiro, as anunciadas mudanças, ora em curso, na condução da política externa, com o objetivo de recuperar parte da credibilidade que havia sido perdida pela diplomacia brasileira. Segundo, discursos (lidos) pela nova presidente - em especial o mais recente, no evento comemorativo dos 90 anos da Folha, sobre o papel da liberdade de imprensa - mostraram uma convicção e um respeito à diversidade de opiniões que Lula raramente foi capaz de expressar. Vide seu famoso "a opinião pública somos nós", seus reiterados alentos aos adeptos do "controle social" da mídia e suas acusações a tentativas "golpistas" (sic) da grande imprensa.
A nova presidente deu sinais - e tomou certas decisões - que evidenciaram que percebeu claramente quão difícil será lidar com o pós-Lula na área política. No Executivo federal e suas empresas e agências, todas as facções e correntes do PT, do PMDB e dos principais partidos aliados estão representadas desde o governo passado, vale dizer, ocupando espaços numa máquina pública crescentemente aparelhada. Os 38 ministérios e mais de uma centena de empresas e órgãos do Executivo e respectivas parafernálias não parecem suficientes para as voracidades envolvidas. A presidente teve de se envolver pessoalmente em vários casos de conflito de interesse para tentar manter seu compromisso de posse: "... formar um governo em que capacidade profissional, liderança e a disposição de servir ao País serão os critérios fundamentais".
É, contudo, no campo da economia que se colocam hoje as questões mais prementes a lidar neste pós-Lula de maiores riscos e incertezas - no Brasil e no mundo. Neste contexto, são imperdíveis tanto as perguntas quanto as respostas da longa e reveladora entrevista concedida pelo ministro Guido Mantega a Eleonora de Lucena (Folha de S.Paulo, 27/2). Provocado, o ministro afirma que "o governo Dilma não é parecido nem com Lula 1 nem com Lula 2. É parecido com Lula 3". E elabora longamente sobre o tema. O que me trouxe à memória um excelente artigo da competente Rosângela Bittar, publicado no Valor de maio de 2006, poucas semanas após a saída de Palocci e de sua substituição pelo atual ministro. O título do artigo era revelador de seu conteúdo: A arte de mudar negando mudanças.
É isso, a meu ver, o que a situação exigirá do governo Dilma na área econômica, para lidar com as consequências da vasta expansão de gastos públicos de boa parte do Lula 2. E, principalmente, com as expectativas que esse expansionismo gerou nas amplas "bases de sustentação" do governo quanto às possibilidades futuras de acesso - direto ou indireto - ao erário. O verbo "lidar" tem vários significados possíveis na rica língua portuguesa. No caso, todos se aplicam.
ECONOMISTA, FOI MINISTRO DA FAZENDA NO GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO
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