Na primeira entrevista longa concedida pela presidente, e
brilhantemente conduzida por Cláudia Safatle, do "Valor", fica claro
que a presidente desposa um conjunto de confusões teóricas que já nos
levou a apuros no passado.
Não há, como Dilma parece acreditar, um bando de malfeitores sádicos
que tenha decidido no passado "derrubar a economia" só pelo prazer da
derrubada. A luta do Brasil contra a inflação descontrolada levou à
adoção de medidas que reduziram o ritmo do crescimento, em alguns
momentos; mas a falta de crescimento sustentado se deve a obstáculos
não resolvidos ainda, como a falta de poupança.
Um grupo de pensadores econômicos sempre defendeu a tese de que é
preciso aumentar a oferta de bens para depois derrubar a inflação.
Esse debate tem data vencida. A tese ficou para trás por absoluta
incapacidade de dirimir uma duvida básica: antes de ser crescimento, o
investimento é demanda agregada. Se a inflação baixa não é
pré-condição, mas resultado final do processo, o que acontecerá no
meio do caminho: alguma inflação e alguma gravidez?
O mais sensato é manter a economia estabilizada, como primeiro
objetivo, para que haja mais segurança para o investimento e o
crescimento se sustente. Depois de décadas de falso dilema, já está
provado que a estabilização é base do crescimento; e que é perigoso
pegar o caminho pelo lado contrário: aumentar o crescimento para
elevar a oferta e assim derrubar a inflação.
Está datada também a tese defendida pela presidente de que a inflação
não é de demanda. Houve um tempo em que o Brasil ficou parado nessa
discussão: é-de-demanda-não-é-de-demanda. Hoje, já se sabe que a
inflação quando se eleva nunca tem uma razão apenas. A taxa subiu
porque algumas commodities, principalmente alimentos, subiram de
preços. Inúmeros fatores influenciam nesses preços, como se viu nos
últimos dias. Há aumentos sazonais, como os escolares, mas nem todo
aumento de preço é de temporada apenas. Há também o fato de que o
governo gastou demais no ano passado, o BNDES manteve seus estímulos
em empréstimos subsidiados, o crédito cresceu fortemente animando
consumidores às compras. Todas as lenhas alimentaram a mesma fogueira.
Numa situação assim, alguém tem que recuar. Melhor que seja o governo.
Os gastos públicos são cortados para que se possa manter o consumo
privado. É diferente de "derrubar a economia". É apenas uma questão de
bom senso.
A presidente diz que o Brasil não cresceu além das suas possibilidades
e que não vai derrubar a economia, mas os juros subiram e já se sabe
que a economia crescerá menos este ano. Ela não vê contradição entre
anunciar R$50 bilhões de corte no orçamento e endividar-se em mais
R$55 bilhões para emprestar para o BNDES, que emprestará para as
empresas a juros abaixo do que o Tesouro paga. Isso é gasto público
também e portanto incoerente com o corte de gasto.
Então suas frases fortes de que não aceitará a volta da inflação em
nenhuma circunstância são tão convincentes quanto tudo o mais que ela
disse que desmonta a frase. O governo não pretende conter de fato seus
gastos, nem os gastos extra-orçamentários via BNDES, e avalia que a
inflação é um problema sazonal, que dá e passa.
O BNDES usa todos esses abundantes empréstimos para continuar tomando
decisões controversas: financiar siderúrgica a carvão de Eike Batista
e entrar de sócio nessa térmica da energia suja; financiar
hidrelétricas na Amazônia sem cautela social e ambiental; ser sócio de
frigoríficos que não comprovam a origem da carne que compram.
O crescimento moderno tem que ter qualidade. Não é possível repetir os
mesmos erros. Este fim de semana chegou com as duas obras de
hidrelétricas do Rio Madeira paralisadas. Em Jirau, por assustadores
problemas trabalhistas, e em Santo Antônio, por anúncio preventivo
feito pela empreiteira responsável.
Por ironia, o consórcio que constrói Jirau chama-se Energia
Sustentável. E nada é sustentável, a começar do preço estabelecido
inicialmente. O consórcio ganhou a disputa pelo preço baixo, que foi
considerado irrealista pelo concorrente. Na época, o governo disse que
não aconteceria de novo o velho truque do passado de as empreiteiras
pediram revisão de preço ao longo da obra. Pois já aconteceu: segundo
o jornal "Valor Econômico" de 10 de março, Jirau que estava orçada em
R$9 bilhões já está em R$13 bilhões. O truque? O mesmo de sempre:
alegar que no meio do caminho havia uma pedra. Mais escavações foram
necessárias e a obra ficou mais cara. Simples.
Mas caro mesmo ficou nos últimos dias quando uma rebelião de
trabalhadores estourou no canteiro de obras e o governo em vez de
mandar fiscais do Ministério do Trabalho para ouvir os operários
mandou a Força Nacional para ajudar a empresa num conflito
trabalhista.
Hoje em dia, crescimento tem que ser sustentável do ponto de vista
ambiental, e sustentado do ponto de vista econômico. A presidente não
parece estar atenta para as duas exigências quando defende velhas
interpretações sobre a natureza da inflação brasileira e quando seu
governo toca projetos de grande porte na Amazônia sem as devidas
garantias ambientais e sociais. Afirmações e fatos precisam coincidir,
do contrário, são palavras ao vento.
Afirmação e fato
A presidente Dilma Rousseff disse que não negociará com a inflação nem
aceitará que ela suba. Daí em diante, todo seu raciocínio desmontou a
afirmação. Acha que não há componente de demanda na inflação - que
está perto do topo da meta, depois do PIB de 7,5% -; diz que se o país
crescer, a inflação cairá; não vê contradição entre cortar R$50
bilhões e elevar gastos em R$55 bilhões.
Entrevista:O Estado inteligente
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domingo, março 20, 2011
MÍRIAM LEITÃO Afirmação e fato
O GLOBO - 20/03/11
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