Apenas a China e a Índia passaram incólumes pela crise asiática de 1997 e foram menos afetadas até agora |
A economia mundial se baliza hoje por dois pólos. Num extremo, os Estados Unidos, símbolo da globalização financeira; no outro, a China, solidamente ancorada no mundo real das manufaturas e do investimento em infra-estrutura. Não é difícil adivinhar quem sairá mais forte dessa polarização.
Em 1990, no triunfalismo da queda do Muro de Berlim, a única voz sensata foi a da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento). No seu relatório anual, ela previu que aquela década e a seguinte seriam caracterizadas pela freqüência, intensidade e poder destrutivo das crises financeiras e monetárias. Na raiz do desastre, estava a aceleração da tendência para eliminar qualquer controle interno e externo ao fluxo desimpedido de capitais.
Principal motor (e beneficiário) da tendência, o governo americano, acolitado pelo FMI (Fundo Monetário Internacional), agia como o aprendiz de feiticeiro da fábula: liberava da garrafa instrumentos esotéricos, derivativos e outras "armas financeiras de destruição em massa", cuja complexidade ele não entendia nem controlava.
Apenas a China e a Índia, que resistiram melhor à pressão liberalizante, passaram incólumes pela crise asiática de 1997 e foram menos afetadas até agora. Os primeiros alunos da classe de globalização financeira são os mais atingidos pela catástrofe: o Reino Unido da terceira via de Blair, a Irlanda e a Espanha das bolhas imobiliárias, até os bancos suíços, que deixaram de lado a atávica cautela para acumular passivos várias vezes maiores do que a economia do país.
Mesmo assim, talvez não se tenha chegado àquele nível de desastre equivalente ao da guerra, indispensável para catalisar uma arquitetura financeira que tome o lugar do esfacelado sistema atual. O problema é que o guardião do status quo político e econômico, único país capaz de viabilizar a reforma, são os Estados Unidos, que teria de abrir mão de parte das vantagens que lhe advêm de ser o maior usufrutuário da ordem ou da desordem estabelecida.
O status quo está morrendo, mas, como dizia Gramsci, o velho não acabou de morrer, e o novo, de nascer; nesse intervalo, toda sorte de sintomas mórbidos aparece. Antes que se consolide nova e adversa correlação de forças, serão os americanos capazes de se curarem do vírus letal da proliferação financeira? Tenho dúvidas, pois o gosto da cobiça financeira corrompe e perverte a sociedade de forma irreversível, destruindo ou transferindo para o exterior o tecido produtivo, desviando os melhores cérebros do mundo da economia real.
Há muito tempo que o poder em Washington é dominado não mais pelo complexo militar-industrial, mas pelo financeiro-político-militar. Basta olhar para as ligações com Wall Street dos principais conselheiros econômicos dos dois candidatos.
Assim termina o mundo, vaticinava T. S. Eliot, não com um estrondo, mas com um gemido. O fim de gelo dos "homens ocos", dos homens de palha de um mundo materializado e sem alegria. A mesma intuição poética de Camões, no início da globalização dos descobrimentos, ao voltar e encontrar a pátria "metida no gosto da cobiça e na rudeza de uma austera, apagada e vil tristeza".