Busca por dólares e papéis do Tesouro dos EUA mostra que percepção do país como porto seguro ainda persiste |
COLUNISTA DA FOLHA
Tornou-se um lugar comum falar do fim da hegemonia norte-americana e até do deslocamento do eixo do mundo para os países asiáticos, numa constatação que mescla razões de ordem estrutural com o papel desempenhado pelos agentes históricos. De fato, seria simplista atribuir ao governo de George W. Bush todos os problemas que os EUA vêm enfrentando. Mas isso não contradiz a nítida percepção de que a chegada de Bush e sua gente ao poder agravou fatores negativos já existentes, além de criar muitos outros. Na área econômica, o governo republicano gerou os déficits gêmeos das contas externa e interna; no plano internacional, as intervenções militares, já de si bastante controversas, de outros tempos, transformaram-se em aventuras guerreiras unilaterais, culminando na invasão do Iraque. Os direitos humanos foram pisoteados, a ponto de admitir a "tortura leve" e o escândalo dos presos sem julgamento, na prisão de Guantánamo. Por fim, a crença na liberdade ilimitada do mercado e na sua auto-regulação redundou no milagre da multiplicação infinita de papéis virtuais até que tudo viesse a terminar numa crise avassaladora cujo alcance e duração ninguém pode prever. Mas é significativo constatar que, em meio à crise, gerada a partir dos EUA, sua moeda e, principalmente, os títulos do Tesouro sejam vistos como portos seguros. Como bem notou Celso Ming, em "O Estado de S. Paulo" de 5/10, o dólar vem se valorizando não apenas com relação ao real, mas também em relação ao euro e outras moedas, enquanto se intensifica a corrida dos investidores rumo aos papéis do Tesouro americano, sem a expectativa de obter ganhos, em busca tão somente da redução de riscos. Seguindo adiante, a crise explodiu paralelamente a uma disputa eleitoral com ressonâncias internacionais, como se verifica seja pela acolhida entusiástica de Barack Obama [candidato democrata] na Europa, seja pela atenção que a mídia dedica à disputa, em todo o mundo. Na verdade, após a razia provocada pelo triunfo da aliança entre neoconservadores e fundamentalistas, a possibilidade da abertura de novos caminhos se torna agora possível. Paradoxalmente, o agravamento da crise econômica veio concorrer para tanto, não obstante seus terríveis efeitos sociais e financeiros. E isso por duas razões básicas. Em primeiro lugar, porque o quadro atual coloca a economia no centro do debate, favorecendo os democratas. Não há contorções verbais ou encantos femininos que possam ofuscar esse fato. Tudo indica que a corrida apertada de algumas semanas vai se converter numa clara vitória de Obama, salvo surpresas de última hora.
Nova agenda
Em segundo lugar, porque a crise impôs uma nova agenda. Não se trata apenas da intervenção do Estado para evitar um colapso do sistema financeiro, medida de emergência que qualquer governo teria de tomar, no sentido de evitar o pior, quaisquer que sejam as justas críticas aos mágicos de Wall Street. Trata-se, sobretudo, de uma inflexão no plano da política e das idéias, após os vários anos em que o neoliberalismo -neste caso, a expressão, usada e abusada, faz sentido- se impôs como as tábuas da lei. Quais são as possibilidades e os limites da agenda do governo Obama? Ainda é muito cedo para que nos arrisquemos a previsões, mas alguns pontos sensíveis de mudança podem ser apontados. No plano internacional, há a perspectiva de que os EUA abandonem uma política unilateral desastrosa e se coloquem como legítimos parceiros de um mundo multipolar, com credenciais democráticas válidas, na qualidade de exemplo, e não de imposição. Sob esse aspecto, a crise contribui para que o unilateralismo guerreiro perca força, quanto mais não fosse, pelos limites impostos aos gastos militares. No plano interno, a crise desempenha um papel limitador, diante dos bilhões de gastos, a título de socorro financeiro, previstos no recente pacote econômico, sem falar em outros que possam vir. Num primeiro momento, que poderá prolongar-se, o provável governo democrata terá de se dedicar a uma engenharia complexa para restaurar a confiança dos mercados e atender a necessidades sociais mais prementes. Mas será difícil, num quadro recessivo, aumentar gastos para atacar a fundo o desemprego, investir em fontes de energia alternativa, generalizar o serviço público de saúde, reduzir os impostos que sobrecarregam a classe média -essa menina dos olhos dos democratas. Conseguirá Obama manter a confiança da maioria dos cidadãos americanos, transmitindo-lhes com clareza a percepção de que está governando em circunstâncias especiais, sem trair seu programa? Dotes de comunicação, para tanto, não lhe faltam. Se ele se sair bem, poderá postular um segundo mandato, provavelmente, em condições bem mais favoráveis. Em caso contrário, a direita raivosa fará estragos nas mentes provincianas e o governo Obama será visto, inclusive com a carga das tintas raciais, como um interregno exótico, a ser desfeito. De uma forma ou de outra, se a hegemonia americana, com a configuração imaginada após a queda do Muro de Berlim [1989], é coisa do passado, o mundo continua a voltar-se para os EUA, num misto de esperança e ansiedade. Mas, se McCain vencer, a ansiedade vai afogar a esperança.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).