Suspeitos, enrolados – e eleitos. O país continua tolerante
com a biografia acidentada de políticos acusados de corrupção
Alexandre Oltramari
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A penitenciária de segurança máxima de Catanduvas, no interior do Paraná, é endereço de alguns dos bandidos mais perigosos do país. Os megatraficantes Marcinho VP e Fernandinho Beira-Mar já passaram temporadas ali. Catanduvas, para os presos, é um pouco pior que o inferno. Os detentos ficam em celas individuais e são monitorados por câmeras 24 horas por dia. Praticamente nada é permitido. É proibido ver televisão, ouvir rádio, ler jornais e revistas. Mas, apesar de tantas restrições, Catanduvas enviará um representante à Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro. Carmen Glória Guinâncio Guimarães, a Carminha Jerominho, soube dentro de sua cela que havia sido eleita com 22 000 votos. Aos 31 anos, apontada como chefe de uma milícia que caçava eleitores a bala, ela tomará posse, se tudo der certo, em janeiro e representará os cariocas pelos próximos quatro anos. A vereadora-presidiária é o mais novo e vistoso ícone de um fenômeno antigo que se repetiu com força nas eleições deste ano – o triunfo dos fichas-sujas.
A turma fez bonito nas urnas. Representantes de praticamente todos os escândalos recentes acabaram eleitos. Em Pernambuco, o ex-presidente da Câmara dos Deputados Severino Cavalcanti será o novo prefeito de João Alfredo, sua cidade natal. Enxotado de Brasília graças às evidências de que embolsava um mensalinho, Severino chegou lá depois de receber apoio até de Lula. O ex-presidente do Senado Jader Barbalho colocou seu primo José Priante no segundo turno das eleições em Belém. Priante teve papel destacado no escândalo da Sudam. Foi citado em grampos por fraudadores e freqüentava, na companhia de Jader, o bunker da quadrilha. Um dos sucessores de Jader no comando do Congresso, Renan Calheiros, garantiu a reeleição de Renan Filho, o Renanzinho, em Murici (AL). Renanzinho foi laranja do pai e beneficiário final da compra de um grupo de comunicação com dinheiro sem origem conhecida. O mensaleiro José Borba, ex-líder do PMDB que embolsou 2,1 milhões de reais do mensalão, vai comandar Jandaia do Sul, no Paraná. O sanguessuga João Mendes, acusado de colocar no bolso propinas de desvios do Ministério da Saúde, ocupará uma cadeira na Câmara do Rio.
Uma das maneiras de medir a tolerância do eleitorado com políticos enrolados é observar o desempenho dos 126 candidatos que integram a lista suja da Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A lista relaciona candidatos que são réus em ações penais ou de improbidade administrativa em 95 cidades. Desse total, 45 acabaram eleitos ou habilitados a disputar o segundo turno - um aproveitamento de mais de 30%. Como a relação foi divulgada pela primeira vez neste ano, é impossível saber se o fenômeno está aumentando. Analisando-se os dados disponíveis, porém, a tolerância do eleitor parece estar, no mínimo, no mesmo nível que em eleições passadas. Há dois anos, quando 63 parlamentares acusados de envolvimento com o mensalão e o escândalo dos sanguessugas testaram as urnas, doze foram reeleitos – um índice de 20%. Mas há casos de eleitores com tolerância acima da média. Em Minas Gerais, metade dos 126 prefeitos investigados pela PF por suspeita de corrupção ganhou um novo mandato. "A falta de informação, somada à falta de consciência sobre a importância do voto, contribui para a vitória de pessoas sem comportamento ético e moral na vida pública", diz o presidente da AMB, Mozart Valadares.
O direito de um candidato enrolado de disputar um cargo eletivo foi garantido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), há dois meses, diante de um questionamento da AMB. A entidade queria que condenados pela Justiça em qualquer instância se tornassem inelegíveis. Depois de sete horas de discussão, nove dos onze ministros da Corte decidiram rejeitar a ação, sob o argumento de que a medida desrespeitava o princípio constitucional de presunção de inocência. Na maior parte das democracias, suspeitas, investigações e até condenações em primeira instância não impedem um candidato de disputar uma eleição. O STF, portanto, fez a sua parte ao rejeitar a proposta. O eleitor, a quem cabe dar a palavra final, também deve fazer a sua. Em São Paulo, o ex-líder do governo na Câmara dos Deputados Professor Luizinho, denunciado como integrante da quadrilha do mensalão, tentou reconstruir sua carreira política disputando uma vaga de vereador em Santo André. Teve 2 400 votos – e perdeu a eleição. O ex-presidente Fernando Collor, que se licenciou do Senado para tentar eleger seu filho prefeito no interior de Alagoas, também fracassou nas urnas. É um sinal de que nem tudo está perdido. Ainda assim, na sexta-feira, a vereadora Carminha Jerominho deixou a penitenciária. Vai cuidar da festa da posse. "O cidadão tem de comprovar bons antecedentes para qualquer concurso público. Por que não teria de fazê-lo para um cargo eletivo?", pergunta o procurador eleitoral Rogério Nascimento, do Rio de Janeiro, o primeiro no país a defender a impugnação dos candidatos com ficha suja.