Essa tese já começa a ser defendida por entusiasmados comandos, após análises de resultados do primeiro turno. Esquecem que para acertar o tiro numa ave em vôo o atirador precisa melhorar sua taxa de "decalagem", o cálculo em que se poderá encontrar o alvo depois de se movimentar no espaço. Acerto condicionado por fatores como condições do tempo, velocidade da ave, tipo de artefato e posição do atirador.
Imaginemos, então, que, apesar de estar muito distante, o mosqueteiro-mor Luiz Inácio queira ganhar o torneio de tiro ao alvo de 2010. Terá ele condições de prever se o campeonato se regerá pelas regras que tentará impor? O Brasil, para começo de conversa, não é uma ilha de segurança no meio de um oceano borrascoso. Sofrerá, mais cedo ou tarde, a ressaca das ondas revoltas, mesmo que as rochas das encostas possam servir de escudo contra devastações irremediáveis. A probabilidade de um país sujeito à intempérie dos mercados financeiros globais é maior do que a propensão a continuarmos incólumes à crise. Portanto, as condições do tempo futuro tendem a ser instáveis, dificultando os traçados retilíneos da política e descosturando as teias de apoio popular, na onda da contrariedade gerada por compressão do poder de compra dos consumidores e enxugamento do assistencialismo distributivista. O País tem sobras para gastar, como reza o mantra governamental, porém, vale lembrar, não se pode dar ao luxo de exibir auto-suficiência num cenário cada vez mais tomado por incertezas. As riquezas que se alastram - e se descobrem continuadamente - sob as profundezas das nossas águas até se prestam ao esforço despudorado de manter acesa a chama cívica, mas o simbolismo de que se revestem será tragado ao primeiro clamor dos apertos sociais.
O fato é que o ciclo da exuberância, cuja visibilidade é notável neste momento em que o País encerra o primeiro turno das eleições e consagra mandatários que postulam a reeleição, parece estar com os dias contados. Se a economia ampliou a rota situacionista, deverá estreitá-la mais adiante. Não se trata de catastrofismo, mas de simples inferência ante o tumulto global. O clima pesado diminuirá o fôlego de muitos corredores. Portanto, a vantagem alcançada nas urnas pela base governista não pode ser simplesmente projetada para traçar cenários futuros. Sob essa primeira camada de densas nuvens se descortinam os primeiros cenários traçados pela disputa nas urnas, a começar por São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, três capitais que abrigam as densidades eleitorais dos três maiores colégios do País, formando um Triângulo das Bermudas por sua condição de espaço vital para naufrágio ou salvação de candidaturas presidenciais. O tucano José Serra sai na frente por conta de Gilberto Kassab, com surpreendente desempenho no primeiro lugar do primeiro turno. Aécio Neves amarga a frustração de ver Márcio Lacerda perder a larga vantagem, em BH, e ser ameaçado no segundo turno pelo deputado peemedebista Leonardo Quintão. Se Eduardo Paes levar a melhor no Rio, o governador Sérgio Cabral cacifará na partida presidencial. Ou como candidato do PMDB ou como vice na chapa encabeçada pelo nome do PT.
A geografia eleitoral será componente vital no processo. SP, MG e RJ reúnem em torno de 55 milhões de eleitores, cerca de 40%, abrindo para o Nordeste, com 27% dos votos, a indicação do vice com força regional. Essa razão aconselhará a composição de uma chapa com nomes das regiões, apesar de a regra comportar exceções. Dos nomes já anunciados, Serra e Aécio representam o Sudeste, sugerindo um vice nordestino, enquanto a chapa de Dilma Rousseff, pela Região Sul, abriria espaço para nome do Sudeste ou mesmo do Nordeste. O quadro partidário, outro vetor de força, importará na medida da capilaridade dos partidos e ainda para efeito de tempo de mídia eleitoral. Nesse caso, o PMDB, com as maiores bancadas parlamentares e fazendo 1.200 prefeitos (18.422.732 votos) no primeiro turno, apresenta-se como par ideal de uma aliança. Ainda no espaço partidário, duas posições merecem destaque: o predomínio do PSDB no Estado de São Paulo, cujo colégio eleitoral é de quase 30 milhões de eleitores, e o crescimento do PT, principalmente nas capitais e nas maiores cidades do País, que daria ao partido um eleitorado de mais de 20 milhões. Como os dois partidos estarão na linha do confronto em 2010, o segundo turno da campanha paulistana, pelo simbolismo que representa, será o evento mais importante do processo eleitoral.
Chega-se, agora, ao fator apadrinhamento. O pleito desmascarou a força de padrinhos. Marta Suplicy, em São Paulo, colou em Lula e teve, agora, votação menor do que em 2004. Aécio Neves agia como o todo-poderoso transferidor de votos até descobrir que o mineiro votou com autonomia. Sobram puxões de orelha do eleitor a quem acha que prestígio é valor que se transfere. Os governantes ainda têm muito a beber na sabedoria popular. Como, por exemplo, a lição de que só peru morre de véspera. Ou, ainda, o ditado "nem tudo que brilha é ouro".
Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político