NOVA YORK. A crise financeira internacional, desencadeada pela bolha hipotecária do mercado imobiliário dos Estados Unidos que revelou uma insuspeitada fraqueza do sistema bancário internacional, tem conseqüências não apenas econômicas, mas, sobretudo, políticas.
O fim da hegemonia dos Estados Unidos, já previsto antes mesmo da explicitação dessa crise, começa a gerar especulações sobre a decadência do império americano e a transição de poder mundial, tanto político quanto financeiro. Embora seja cada vez mais claro que o mundo multipolar é uma realidade com a qual o futuro governo americano, a ser eleito em 4 de novembro, terá que lidar, e que a administração dessa crise financeira trará dificuldades novas para o futuro dos Estados Unidos, não há indicações suficientes de que o predomínio americano no século tenha terminado.
O historiador Niall Ferguson, da Universidade de Harvard, que prepara para o mês que vem o lançamento de seu livro “The ascent of Money: a Financial History of the World” (“A ascensão do dinheiro: uma história financeira do mundo”), fez em seu blog uma análise das conseqüências geopolíticas da crise e concluiu que se deve hesitar sempre ao decretar o declínio e queda dos Estados Unidos: “A América já passou antes por crises financeiras desastrosas — não apenas a Grande Depressão, mas também a Grande Estagflação dos anos 1970 — e emergiu com sua posição geopolítica fortalecida.
Essas crises, por piores que tenham sido em casa, sempre tiveram os piores efeitos nos rivais da América”.
Ele lembra que até o momento os piores resultados de mercados de ações têm sido da China e da Rússia, “números que não são boas propagandas para os modelos de economia mais controlados pelo governo adotados por Pequim e Moscou”. Mas Ferguson admite que os Estados Unidos crescerão menos a partir de agora, e provavelmente a China se tornará a maior economia do mundo antes de 2027, prazo previsto pela Goldman Sachs em seu estudo sobre as economias emergentes dos Brics (Brasil, Rússia, Índia e China).
O historiador prevê também que, a exemplo do que aconteceu com a libra inglesa, o dólar poderá perder a propriedade de ser a única moeda de referência mundial. Também o sociólogo e historiador brasileiro Hélio Jaguaribe acha que “a emergência, da China como grande potência já está definida e se realizará com celeridade, na segunda década deste século, já deverá transcorrer sendo a China uma segunda potência mundial.
O totalitarismo chinês já se converteu num autoritarismo multidimensional, com crescente importância do papel do mercado. Na medida em que o autoritarismo chinês mantenha suas características ilustradas, o regime tenderá a persistir exitosamente por mais algum tempo”.
Jaguaribe considera “discutível, entretanto, que as características ilustradas desse autoritarismo sejam preservadas por longo prazo. Ou a China retorna ao regime multidimensional ou será paralisada pelo burocratismo”.
Mas, no que se refere às mudanças relativas à presente supremacia americana, ele não crê que possam ser vislumbradas a curto prazo. “Isso não obstante, o mundo caminha para uma nova bipolaridade, marcada pela crescente importância da China”.
O economista brasileiro Paulo Vieira da Cunha, ex-diretor do Banco Central atuando no mercado financeiro de Nova York, acha que o grande desafio dos Estados Unidos será montar uma arquitetura financeira para manter de uma forma crível “uma política monetária muito frouxa no curto prazo, usando inclusive a vantagem de que no momento de crise o dólar e os ativos americanos ainda continuam a se valer daquele ‘privilégio exorbitante’ de que falava De Gaulle, e a longo prazo continuar atraindo o interesse dos investimentos”.
Ao contrário do que aconteceu na década de 1950, Vieira da Cunha acha que no momento em que passar a fase aguda da crise, os investidores “provavelmente vão querer cobrar uma taxa de risco do próprio Tesouro americano”.
No momento em que o pânico acaba, e que em outros lugares do mundo você começam a ter atrativos, “qual vai ser a vantagem de ficar recebendo uma taxa de juros baixíssima nos Estados Unidos quando você está vendo o problema da dívida crescente?”, pergunta ele.
A dívida externa americana, que chegou a US$ 10 trilhões mês passado, correspondendo a 80% do PIB, provavelmente chegará a 100% nessa crise financeira, com as medidas já anunciadas e a necessidade de dar liquidez ao mercado financeiro. Para o economista brasileiro, embora isso não seja inconcebível para uma economia com o dinamismo da americana, “o problema é como administrar essa situação com taxa compatível com o equilíbrio fiscal”.
No momento, analisa ele, “todos focados nesse problema de curto prazo, porque, se não resolver, você não sobrevive. Num segundo momento, as pessoas vão perguntar como você vai se financiar daqui para frente”.
Uma conseqüência imediata é a possibilidade, impensável anos atrás, mas aventada semana passada em Washington, de os títulos do Departamento do Tesouro dos EUA sofrerem uma desvalorização devido ao crescimento do endividamento do governo, com as agências de risco começando a analisar o rebaixamento dos títulos, que hoje são triplo A.
Apenas com essa especulação, mesmo que seja difícil que isso venha a acontecer de fato, aumentarão as exigências do mercado por taxas mais altas de juros. Paulo Vieira da Cunha acha que “a política monetária frouxa do momento, para não deixar a economia desabar, não combina com o que terá que ser feito depois”, quando previsivelmente os Estados Unidos terão mais dificuldades para atrair investidores. Nesse contexto, o papel da China será crucial. (Continua amanhã)
Entrevista:O Estado inteligente
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