Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 25, 2008

O Fantasma, de Robert Harris

Pancada disfarçada, mas dura

O vilão do thriller político O Fantasma chama-se
Adam Lang – mas é uma caricatura óbvia do
ex-primeiro-ministro britânico Tony Blair


Moacyr Scliar

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Trecho de O Fantasma

Ex-repórter e comentarista político, o inglês Robert Harris, 51 anos, tornou-se um escritor de sucesso com romances históricos sobre o Império Romano (Pompéia) ou a II Guerra Mundial (Enigma). Em O Fantasma (tradução de Fabiano Morais; Record, 322 páginas; 40 reais), recém-lançado no Brasil, Harris preferiu tratar dos bastidores do poder contemporâneo, que ele conheceu bem como jornalista – e como simpatizante do New Labour, ala que deu novos rumos ao Partido Trabalhista inglês com a eleição de Tony Blair, em 1997. O personagem central do livro é um caviloso ex-primeiro-ministro chamado Adam Lang, responsável pelo envolvimento da Inglaterra na invasão do Iraque. Trata-se obviamente de um roman à clef retratando Tony Blair. Harris desiludiu-se com o ex-primeiro-ministro por sua participação na Guerra do Iraque – e também porque, em 2001, Blair demitiu Peter Mandelson, amigo de Harris, do gabinete.

O título faz referência ao personagem que narra a história, um ghost writer (ghost é "fantasma" em inglês) contratado para escrever a autobiografia de Lang. Ele substitui outro ghost writer, Mike McAra, morto por afogamento. O novo escritor nutre suspeitas (fundamentadas, como depois se constata) sobre a morte de McAra. Ultrapassando as funções para as quais foi contratado, ele começa a investigar o passado de Lang. Vai desvendar uma trama que envolve a CIA e companhias privadas com negócios escusos no Iraque – enredo que Harris conduz em ritmo cada vez mais frenético, até o final imprevisível.

A pergunta que se impõe é: se Harris conhece tão bem os bastidores da política britânica, por que escreveu um romance, e não uma obra de jornalismo? As vantagens da ficção são várias: ela dispensa o trabalho de investigação rigoroso – e cria uma blindagem contra processos judiciais. Também permite que Harris se ampare em uma tradição na qual os escritores ingleses são mestres: o thriller político. Harris não alcança os píncaros do gênero – não é um John le Carré ou um Graham Greene –, mas sabe conduzir uma narrativa absorvente. O Fantasma segue a melhor receita do best-seller: intriga política, detalhes picantes e paixões escusas nas ante-salas do poder. E dá umas pauladas críticas disfarçadas (ainda que claras) em um político que começou com brilho, mas caiu em desgraça na opinião pública.


LIVROS

Trecho de O Fantasma, de Robert Harris

Um

De todas as vantagens que a profissão de ghost-writer oferece, uma das maiores é a oportunidade que se tem de conhecer pessoas interessantes. Andrew Crofts, Ghostwriting

Assim que soube como McAra morreu, eu deveria ter dado o fora. Percebo isso agora. Deveria ter dito: "Rick, sinto muito, isso não é pra mim, não me soa bem", terminado meu drinque e ido embora. Mas ele, Rick, era tão bom em contar histórias - sempre pensei que ele deveria ter sido o escritor e eu, o agente literário -, que quando começava a falar, não havia a menor dúvida de que eu iria ouvir. Então, quando ele terminou, eu já estava fisgado.

A história, da forma como Rick me contou durante o almoço naquele dia, era assim:

McAra tinha pegado a última barca de Woods Hole, Massachusetts, para Martha's Vineyard dois domingos antes. Calculei mais tarde que deve ter sido no dia 12 de janeiro. Não se sabia ao certo se a barca iria sair ou não. Desde o meio da tarde que estava ventando muito e as últimas travessias haviam sido canceladas. Porém, por volta das 21 horas, o vento diminuiu um pouco e às 21h45 o capitão decidiu que era seguro zarpar. O barco estava lotado: McAra teve sorte de conseguir uma vaga para o seu carro. Ele estacionou debaixo do convés e então subiu para pegar ar.

Foi a última vez que alguém o viu com vida.

A travessia até a ilha geralmente leva 45 minutos, porém, naquela noite em particular, o clima retardou consideravelmente a viagem: aportar uma embarcação de 60 metros com um vento de 50 nós, disse Rick, não é moleza. Eram quase 11 horas da noite quando a barca atracou no porto de Vineyard e os carros começaram a sair - todos, menos um: um utilitário esportivo Ford Escape cor de canela novinho em folha. O comissário de bordo pediu pelo alto-falante que o dono retornasse ao seu veículo, pois ele estava atravancando os motoristas de trás. Quando mesmo assim ele não apareceu, a tripulação conferiu as portas do carro, que calharam de estar destrancadas, e manobrou o Ford com o motor desligado até o cais. Mais tarde, eles vasculharam o navio com atenção: as escadarias, o bar, os banheiros, até mesmo os botes salva-vidas - nada. Ligaram para o terminal de Woods Hole para confirmar se alguém havia desembarcado antes de o navio sair ou talvez tivesse sido deixado acidentalmente para trás - novamente: nada. Só então um oficial do Departamento de Embarcações a Vapor de Massachusetts finalmente entrou em contato com o posto da Guarda Costeira em Falmouth para comunicar um possível caso de homem ao mar.

A polícia descobriu que a placa do Ford estava registrada em nome de um tal Martin S. Rhinehart, da cidade de Nova York, embora o Sr. Rhinehart tenha sido localizado, algum tempo depois, na sua fazenda na Califórnia. Àquela altura, já era quase meia-noite na Costa Leste e cerca de 21 horas na Oeste.

- Estamos falando do Marty Rhinehart? - interrompi.

- Ele mesmo.

Por telefone, Rhinehart confirmou imediatamente à polícia que o Ford lhe pertencia. Ele o mantinha em sua casa em Martha's Vineyard para uso próprio e de seus convidados no verão. Também confirmou que, apesar da época do ano, um grupo de pessoas estava hospedado lá no momento. Ele disse que pediria à sua assistente para ligar para a casa e descobrir se alguém tinha pegado o carro emprestado. Meia hora depois, ela ligou de volta para dizer que havia, de fato, alguém desaparecido, um homem chamado McAra.

Não havia mais nada a se fazer antes do raiar do dia. Não que isso fosse um problema. Todos sabiam que, se um passageiro tivesse caído no mar, a busca seria por um cadáver. Rick é um desses americanos irritantemente em boa forma de 40 e poucos anos, que parece ter 19 e faz coisas horríveis a seu corpo com bicicletas e canoas. Ele conhece o mar: já passou dois dias contornando os 96 quilômetros da ilha a remo em um caiaque. A barca de Woods Hole atravessa o canal onde o estreito de Vineyard se encontra com o estreito de Nantucket, e aquelas águas são perigosas. Quando a maré está alta, é possível ver a força das correntes sugar as enormes bóias do canal, entortando-as para o lado. Rick balançou a cabeça. Em janeiro, em um vendaval, na neve? Ninguém conseguiria sobreviver mais do que cinco minutos.

Uma moradora encontrou o corpo no início da manhã seguinte, jogado na praia a cerca de seis quilômetros da costa da ilha, em Lambert's Cove. A carta de motorista na sua carteira confirmou que se tratava de Michael James McAra, 50 anos, natural de Balham, ao sul de Londres. Lembro-me de ter sentido um acesso súbito de compaixão ao ouvir o nome daquele bairro lúgubre e nada exótico: ele certamente estava muito longe de casa, o pobre diabo. Seu passaporte trazia o nome da mãe como parente mais próxima. A polícia levou o corpo para o pequeno necrotério no porto de Vineyard e então foi até a casa de Rhinehart para dar a notícia e buscar um dos outros convidados para identificá-lo.

Deve ter sido uma cena e tanto, disse Rick, quando o convidado voluntário finalmente apareceu para ver o corpo: "Aposto que o funcionário do necrotério ainda está falando no assunto." Havia uma patrulha de Edgartown com uma luz azul piscante, um segundo carro com quatro guardas armados para proteger o edifício e um terceiro veículo, à prova de bombas, carregando o homem instantaneamente reconhecível que, até 18 meses atrás, tinha sido o primeiro-ministro da Grã-Bretanha e da Irlanda do Norte.

O almoço tinha sido idéia de Rick. Eu nem sabia que ele estava na cidade até ele me ligar na noite anterior. Insistiu em que nos encontrássemos no seu clube. O clube não era exatamente dele - Rick era, na verdade, membro de um mausoléu semelhante em Manhattan, cujos membros tinham cadeiras cativas mútuas em Londres -, mas ele o amava assim mesmo. Na hora do almoço, somente homens podiam entrar. Todos usavam ternos azul-marinho e tinham mais de 60 anos: não me sentia tão jovem desde que saí da universidade. Lá fora, o céu de inverno pesava sobre Londres como uma enorme lápide cinza. Dentro do clube, a luz elétrica amarela de três candelabros imensos refletia nas escuras mesas envernizadas, nos talheres de prata e nas garrafas avermelhadas de vinho tinto. Um pequeno cartão entre nós anunciava que aquela era a noite do torneio anual de gamão do clube. Era como a Mudança da Guarda ou as Casas do Parlamento - algo que um estrangeiro esperaria da Inglaterra.

- Estou impressionado que isso não tenha saído nos jornais - falei.

- Ah, mas saiu. Ninguém fez segredo. Obituários foram publicados.

E, pensando bem, eu me lembrava vagamente de ter visto alguma coisa. Mas tinha passado um mês trabalhando 15 horas por dia para terminar meu novo livro, a autobiografia de um jogador de futebol, e o mundo além do meu escritório se tornara um borrão.

- O que diabos um ex-primeiro-ministro estava fazendo identificando o corpo de um homem de Balham que caiu da barca para Martha's Vineyard?

- Michael McAra - anunciou Rick, usando o tom enfático de um homem que tinha voado quase 5 mil quilômetros para dizer esta frase - o estava ajudando a escrever suas memórias.


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