Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 18, 2008

Última Parada 174, de Bruno Barreto

A tragédia virou só um

Última Parada 174 é bem-feito, bem-intencionado – e irrelevante. Faltam-lhe a volatilidade e o destemor que hoje marcam a melhor produção brasileira, da qual os Barreto vão ficando de fora


Isabela Boscov

VEJA TAMBÉM
Exclusivo on-line
Trailer

Na tarde de 12 de junho de 2000, o bandido Sandro do Nascimento manteve sob seqüestro, durante mais de quatro horas, os passageiros de um ônibus da linha 174, na Zona Sul carioca, armado de um revólver. A convulsão que se desenrolou ao vivo para todo o país, alimentada pelo despreparo da polícia, terminou com uma refém assassinada e o seqüestrador morto a caminho da delegacia. Em um documentário magnífico, Ônibus 174, o cineasta José Padilha, que depois faria Tropa de Elite, mostrou como esse episódio encapsulava as desgraças mais flagrantes da vida brasileira. Argumentou, com riqueza de evidências, que desde os 6 anos, quando assistiu à mãe ser assassinada a facadas, Sandro percorria um trajeto cujo destino certo era uma tragédia como aquela – e que os outros protagonistas dela também tinham seus papéis assinalados. Ver Ônibus 174 é uma experiência que provoca um tumulto de sentimentos. Já assistir a Última Parada 174 (Brasil, 2008), que estréia no país nesta sexta-feira e no qual o diretor Bruno Barreto recupera com toques ficcionais a trajetória de Sandro, é uma experiência bem mais previsível e convencional. Como, de um ponto de partida tão forte, pode se ter chegado a algo tão brando, quase banal?

Fotos Antonio Scorza/AFP e Paula Prandini
SEM FORÇA
Os desesperos distintos, mas extremos, de Sandro do Nascimento e de uma de suas reféns, em 12 de junho de 2000: na reconstituição (no detalhe), o excelente Michel Gomes atinge a mesma temperatura – mas a cena que o cerca é só de mentirinha

Última Parada 174 não é um filme ruim. É bem-feito e bem-intencionado, e tem em Michel Gomes, do grupo Nós do Morro, uma escolha soberba de protagonista. Mas é também um filme impregnado de noções superadas sobre como deve ser o cinema brasileiro – a começar pela sua visão do bem-feito e bem-intencionado. Desde o início da chamada "retomada", grupos no cinema e no governo defendem a idéia de que o Brasil deve ter uma indústria cinematográfica regular. Nem cabe discutir aqui se a idéia é boa; o caso é que o modelo lógico que se imaginou para ela, de uma produção média que garanta a assiduidade da platéia, tem sido atropelado pelos fatos. O melhor cinema que se faz hoje no Brasil, e que muitas vezes dá bilheteria, é quase sempre o que contraria expectativas. Seja por casar humor e efusão pop com horror social, como em Cidade de Deus, seja por abraçar sem reservas o sentimentalismo da cultura sertaneja, como em 2 Filhos de Francisco – para ficar em dois pólos opostos da produção recente. Em outras palavras, o melhor cinema brasileiro gosta de fazer o que não se espera dele e, por ter se fixado nessa índole imprevisível, é até cruel para quem o faz. Última Parada 174 corre, aí, na contramão: nada representa melhor o ideal de um cinema institucionalizado do que o sobrenome Barreto.

Todo-poderoso nos anos plúmbeos da Embrafilme, que Fernando Collor desmantelou, o clã de produção fundado por Luiz Carlos e Lucy Barreto (e que, além de Bruno, inclui seu irmão Fábio, de O Quatrilho) preserva uma parte considerável de sua influência política. Tanto que, apesar da recepção indiferente que obteve no Festival de Toronto, Última Parada 174 foi escolhido candidato a disputar uma vaga nas indicações ao Oscar de produção estrangeira de 2009. Se vai obtê-la ou não é desimportante: apesar de alguns acertos nos últimos dois anos (em que premiou A Vida dos Outros e Os Falsários), essa segue sendo a categoria mais desprestigiada do Oscar, inclusive pelo próprio corpo da Academia. Já a suposta influência artística do clã Barreto tem sido, cada vez mais, colocada em sua verdadeira perspectiva: ela nunca existiu realmente, exceto pelo fato de os Barreto terem sido, durante a era de loteamento promovida pela Embrafilme, dos poucos produtores com cacife para realizar e exibir; e por terem feito seu nome num tempo em que a televisão era ainda concorrência modesta ao cinema (Dona Flor e Seus Dois Maridos, lançado por Bruno Barreto em 1976, mantém o posto de recordista em ingressos vendidos no país).

Última Parada 174 é um exemplo tanto mais doloroso dessa irrelevância por ser uma aposta tão ambiciosa, e por revelar um desejo tão agudo de Bruno de alcançar a vanguarda: com o roteiro de Bráulio Mantovani (de Cidade de Deus), com a trilha evocativa de Marcelo Zarvos que lembra as composições de Gustavo Santaolalla para Brokeback Mountain e Babel, com as imagens cheias de subjetividade registradas em locação – e com o esforço de não vitimizar em demasia o personagem, uma decorrência direta do efeito Tropa de Elite. Mas essas não são características que emanam do ponto de vista do diretor, são adereços afixados ao filme. E ocorre também que o infelicíssimo Sandro, que em seu último dia sobre a terra tornou uma outra família tão infeliz quanto ele próprio, não é um personagem talhado para o equilíbrio. Assim como o melhor cinema que se faz hoje no Brasil não é. Esse cinema avançou muito sobre a interpretação de que o público não gostava de filme nacional porque ele era malfeito. É hoje bem-feito, individualista acima de tudo e, pelo que se pode julgar até aqui, afeito a erguer e demolir reputações sem maior cerimônia. Última Parada 174 e os Barreto são só as vítimas mais visíveis, neste momento, da volubilidade e efervescência que às vezes fazem esse cinema ser grande.


Arquivo do blog