Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, outubro 02, 2008

Henry Paulson está errado Luigi Zingales




Valor Econômico
2/10/2008

Quando uma empresa rentável é afetada por um passivo muito grande, a solução não é o governo comprar seus ativos a preços inflados. A solução, em vez disso, é entrar em processo de recuperação judicial, o que nos Estados Unidos significa entrar no "Capítulo 11" da Lei de Falências.

Sob o Capítulo 11, as empresas com operações básicas sólidas geralmente trocam as dívidas por patrimônio. Os antigos donos do patrimônio são tirados de cena e as antigas reivindicações de dívidas são transformadas em reivindicações de patrimônio na nova entidade, que continua em operação sob nova estrutura de capital. De forma alternativa, os detentores dos títulos de dívida podem concordar em reduzir o valor da dívida em troca de algumas garantias. Portanto, por que não usar esta abordagem bem estabelecida para solucionar os atuais problemas do setor financeiro?

A resposta óbvia é que não temos tempo, os procedimentos do Capítulo 11 geralmente são longos e complexos e a atual crise atingiu tal ponto que o tempo tornou-se crucial. Porém, estamos em tempos extraordinários e o governo adotou e está preparado para adotar medidas sem precedentes. Como se não fosse suficiente resgatar a grande seguradora AIG e proibir todas as vendas a descoberto de ações financeiras, agora o secretário do Tesouro dos EUA, Henry Paulson, propõe a compra (com dinheiro dos contribuintes) de ativos problemáticos do setor financeiro. Mas a que preço?

Se bancos e instituições financeiras encontram dificuldade para se recapitalizarem (ou seja, lançar novas ações) é porque os investidores estão incertos sobre o valor dos ativos em suas carteiras de investimento e não querem pagar em excesso. Será que o governo se sairá melhor ao avaliar esses ativos? Em uma negociação entre autoridades do governo e um executivo de banco com uma bonificação em risco, quem terá mais influência em determinar o preço? O plano de Paulson criaria uma instituição beneficente que proporcionaria bem-estar aos ricos - à custa dos contribuintes.

Se o subsídio do governo for grande o suficiente, terá êxito em acabar com a crise. Mas, de novo, a que preço? Além do custo de bilhões de dólares dos contribuintes, o plano de Paulson viola o princípio capitalista fundamental, segundo o qual quem quer que colha os lucros, também terá de arcar com os prejuízos. Lembrem-se de que na crise da Poupança e Empréstimos dos EUA, no fim dos anos 80, o governo teve de resgatar essas instituições porque seus depósitos eram garantidos pelo governo federal. Mas, neste caso, o governo não tem de resgatar os detentores de títulos de dívidas do Bear Stearns, AIG ou de qualquer outra instituição financeira que venha a beneficiar-se do plano de Henry Paulson.

Como não temos tempo para os procedimentos do Capítulo 11 e não queremos resgatar todos os credores, o mal menor seria fazer o que os juízes fazem em processos de recuperação judicial litigiosos e muito longos: impõem um plano de reestruturação aos credores, com parte da dívida sendo perdoada em troca de patrimônio ou garantias.

Há precedentes para tal medida ousada. Durante a Grande Depressão, muitos contratos de dívidas estavam indexados ao ouro. Portanto, quando a conversibilidade do dólar em ouro foi suspensa, o valor da dívida decolou, ameaçando a sobrevivência de muitas instituições. O governo do presidente Roosevelt declarou a cláusula inválida, obrigando o perdão da dívida.

Meu colega Randall Kroszner, um dos diretores do Fed, estudou este episódio e mostrou que não apenas as ações, mas também os bônus, avançaram após o Suprema Corte manter a decisão. Como isso é possível? Como os especialistas em finanças empresariais vêm dizendo há 30 anos, ter muitas dívidas e pouco patrimônio é algo custoso, portanto reduzir o valor de face da dívida às vezes pode beneficiar não apenas os detentores do patrimônio, mas também os de títulos das dívidas.

Contudo, embora o perdão das dívidas beneficie tanto os donos de patrimônio como os de títulos de dívidas, estes últimos não concordam voluntariamente com a idéia por dois motivos. Primeiro, mesmo com cada detentor de títulos se beneficiando, ele (ou ela) se beneficiaria ainda mais se todos os demais reduzissem o valor de face dos bônus, mas ele (ou ela) não o fizesse. Portanto, todos esperam que os outros se mexam primeiro, criando atrasos óbvios. Segundo, do ponto de vista dos detentores dos títulos, o resgate do governo é uma opção melhor. O simples ato de falar em um resgate pelo governo reduz o incentivo dos detentores de bônus para agir, tornando o resgate ainda mais necessário.

Da mesma forma que na Grande Depressão e em várias reestruturações de dívidas, faz sentido na atual circunstância exigir o perdão parcial das dívidas ou uma troca de dívidas por patrimônio no setor financeiro. É uma estratégia bem testada e deixa os contribuintes fora do quadro.

Obrigar a troca de dívidas por patrimônio, ou o perdão das dívidas, não seria uma maior violação dos direitos de propriedade privada do que um resgate maciço. Entretanto, para os grandes participantes do setor financeiro, é muito mais atraente ser resgatado pelos contribuintes.

De fato, para o setor financeiro, o apelo da proposta de Paulson é precisamente o fato de atingir muitos e beneficiar poucos. Como os "muitos" (contribuintes) estão dispersos, não podemos lutar à altura no Congresso dos EUA, onde o setor financeiro está muito bem representado politicamente. Em seis dos últimos 13 anos, o Tesouro teve como secretários ex-alunos do Goldman Sachs.

A decisão que o Congresso tomar agora afetará não apenas as perspectivas de curto prazo da economia dos EUA, mas moldará o tipo de capitalismo que teremos pelos próximos 50 anos. Queremos viver em um sistema no qual os lucros são privados, mas as perdas são socializadas, no qual o dinheiro dos contribuintes é usado para sustentar empresas falidas? Ou queremos viver em um sistema em que as pessoas prestam contas por suas decisões, em que o comportamento imprudente é penalizado e o comportamento prudente, recompensado?

Para qualquer um que acredite no livre mercado, o risco mais grave da atual situação é que o interesse de alguns poucos financistas mine o funcionamento dos fundamentos do sistema capitalista. Chegou a hora de salvar o capitalismo dos capitalistas.

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