A insustentável leveza do crer
Há na cultura brasileira um gosto peculiar para fantasiar os pequenos ajustes como grandiosas mudanças. Quer tucana quer petista, a política econômica recente se basta em dois ou três avanços - que em outros lugares já eram pontos de partida havia tempos - para dizer que estamos "quase lá". No governo FHC, foram a estabilidade monetária (juros altos para conter a inflação) e o câmbio flutuante (pós-Gustavo Franco, é claro); no governo Lula, a desdolarização da dívida e o aumento das reservas internacionais, além do crédito subsidiado. Quando a promoção do Brasil ao "investment grade" por algumas agências de risco foi anunciada como resultado de tudo isso, a propaganda oficial festejou como se fosse a Copa do Mundo da economia.
Não por acaso, as mudanças mais demoradas e profundas, que no entanto podem ajudar muito os países que passam por crises de curta duração, ficaram em segundo plano. Nem tucanos nem petistas fizeram as reformas que prometeram, como a política e a judiciária; ignoraram em especial a tributária, que significaria interromper a escalada dos impostos e permitir melhora no ambiente de negócios e criação de empregos qualificados. E pouco atuaram no sentido de salvar o sistema de educação brasileiro, que continua muito longe de atingir o "investment grade" nas avaliações de qualidade mundiais. Ajustes aqui e ali, dados estatísticos acolá - e tudo continuou no mesmo lugar. Puxa, mas a inflação está baixa e a economia em crescimento!
Tal incapacidade de fazer reformas de verdade, que desmontem privilégios e queimem etapas, atravessa a história do Brasil, mas chama a atenção em dois partidos cujos programas se dizem comprometidos com a idéia de reforma - e que fazem hoje, nas eleições municipais, o ensaio para a sucessão de 2010. Continuamos a viver sob o mesmo modo oligárquico do poder, em que a conciliação serve menos à harmonia coletiva do que aos interesses particulares. Cada governo repete um padrão ancestral: aumenta os gastos, mas não os investimentos; diz combater a corrupção, mas ela reaparece cada vez mais escandalosa; comemora a lenta redução da desigualdade, mas não tem a menor idéia de como acelerar esse processo.
Que essa aceleração é fundamental ninguém parece compreender. O Brasil consegue ter desigualdade maior do que as de China e Índia, países com mais de um bilhão de habitantes cada. Metade dos nossos habitantes não tem acesso à rede de esgoto. Regiões como a Nordeste e a Norte concentram a maioria dos miseráveis e das pessoas que ainda mantêm taxa de fertilidade do século 19 - ou seja, geramos mais brasileiros nos lugares onde há menos condições para criá-los -, mas a direita detesta ouvir falar em desenvolvimento regional e a esquerda nem sequer concebe debater a necessidade de planejamento familiar. O analfabetismo é alto, especialmente o funcional, e existe dentro das salas de aula; além disso, metade dos jovens não chega ao ensino médio.
Mas está tudo bem, estamos avançando, o copo está enchendo... Um exemplo primoroso foi dado pelo ex-ministro Célio Borja em entrevista a Dora Kramer, no caderno especial deste Estado, ao comentar como o Brasil tem se saído nos 20 anos desde a Constituição: "Muito razoavelmente bem." O que quer que isso signifique dá uma idéia da bonomia nacional. A Constituição é exagerada, formalista e confusa, um bom exemplo às avessas da falta de método brasileira. Tentou legislar até a taxa de juros! E, com suas CPIs e MPs e outros instrumentos distorcidos, criou uma situação que já descrevi da seguinte forma: o Legislativo julga, o Executivo legisla e o Judiciário executa - ou fingem que o fazem. Mas tudo segue "muito razoavelmente bem".
É o mesmo que pensa, afinal, a grande maioria dos brasileiros a respeito da escola onde seus filhos estudam. Enquanto isso, os acadêmicos daqui e d?além-mar têm absoluta certeza de que um acordo ortográfico - mais um remendo em lugar de uma reforma - vai facilitar o ensino do idioma e aproximar os povos lusófonos. Tirar alguns acentos ajuda, mas precisava eliminar também os diferenciais como em "por/ pôr"? E por que diabos "guarda-chuva" tem hífen e "mandachuva" não? O problema dos meninos é interpretar textos, e a ortografia diferente - como existe entre o inglês da Inglaterra e o dos EUA - não impediu o moçambicano Mia Couto de amar o brasileiro Jorge Amado.
Mas nenhum acontecimento da semana foi tão representativo das auto-ilusões brasileiras quanto a divulgação de dados sobre a Amazônia. Quer dizer então que os maiores desmatadores da floresta são os assentamentos do Incra, muitos deles ocupados por índios e sem-terra? Que não é apenas a cobiça dos grandes produtores exportadores que devasta nossa biodiversidade? O ministro Carlos Minc mandou que desengavetassem esse levantamento - pois o poder continua a acobertar o que quiser da imprensa brasileira, salvo quando tem algum conflito interno - e depois da repercussão disse que havia falhas nele, etc. O fato é que sabemos muito pouco sobre o estado real da floresta, como sobre tantas outras coisas do Brasil. Mas os crédulos, majoritários, crêem. Mudar para quê?
MITOS MACHADIANOS
Já estou lendo o novo livro de Philip Roth, Indignation, e é bom saber que, assim como a releitura de Joseph Conrad o influenciou em seu livro anterior, Fantasma Sai de Cena, no atual também há uma leitura precursora. E é de um brasileiro. E é de Machado de Assis: Memórias Póstumas de Brás Cubas, que Roth leu na tradução com o título idiota de Epitaph of a Small Winner (Epitáfio de um Pequeno Vencedor). Roth, em entrevista à Folha, disse que considera Machado um "comediante trágico", comparando-o com Beckett nesse riso diante da morte. Em entrevista ao The Guardian, disse que o estado de seu narrador, sedado com morfina, é também ambíguo, pois imagina estar morto.
Para este machadiano e rothiano, seria natural alimentar uma expectativa enorme com o livro, mas procurei não fazê-lo. As comparações se limitam ao ponto de vista tragicômico. Na escrita, Machado é mais irônico, destacado; Roth, mais direto, convencional. Mesmo assim, por enquanto tenho achado que é o melhor livro recente de Roth, melhor ainda que Homem Comum e Animal Agonizante, com sua história poderosa sobre o filho de um açougueiro no período da Guerra da Coréia que, com seu pai, é afetado pelos delírios políticos da América. Volto ao assunto. Mas, ainda que algumas publicações prometam inéditos que não são nada inéditos, é bom ver Machado em alta.
UMA LÁGRIMA
Paul Newman (1925-2008) não apenas provocava suspiro nas mulheres, que viam naquele homem alto de olhos azuis o companheiro que as levaria no guidão de bicicleta como levou Katherine Ross no filme Butch Cassidy e Sundance Kid. Também os homens gostariam de ser como ele, um aventureiro com classe - na vida real e em muitos papéis. Sem ter sido um Marlon Brando ou feito grandes clássicos do cinema, sua figura e seu caráter deixam saudades.
MINICONTO
Brasileiro se encontra com Deus à porta do céu.
- Vá para aquele canto, junte-se aos seus compatriotas - diz Ele.
- Não entendo, Senhor. O céu não é um lugar livre, onde todos são iguais e não há fronteiras?
- Sim, meu filho. Mas eu tenho algo a acertar com muitos de vocês, brasileiros.
- Como assim, algo a acertar?
- De tanto vocês falarem "Deus lhe pague", todos aqueles ali agora querem receber de Mim. E Eu não tenho fundos!
NOVOS COLUNISTAS
A chegada de Milton Hatoum, Lúcia Guimarães e Adriana Falcão a este caderno, além do prazer da vizinhança (tem um pouco de açúcar aí?), é um acréscimo de talento e variedade que, antes, me deixa muito satisfeito como leitor. Bem-vindos, e que sejam bem lidos!
POR QUE NÃO ME UFANO
Já que os brasileiros gostam tanto de imitar os americanos no que têm de pior, por que não copiar a idéia de um debate entre candidatos a vice? Veja bem: em São Paulo, até por não ser raro que o vice assuma, poderíamos ver frente a frente - ou lado a lado, como ficam na TV - Aldo Rebelo, Alda Marco Antônio e Campos Machado. Não seria, digamos, edificante?