Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 05, 2008

Vamos cumprir essa formalidade João Ubaldo Ribeiro

Tomara que não esteja fazendo um dia enfarruscado, ventoso e frio, como os que têm aparecido ultimamente, por aqui onde moro. Afinal de contas, é mais uma repetição da única ocasião em que, no governo desta assim chamada democracia, somos convocados a dar algum palpite - e assim mesmo porque convém a eles, os que mandam em nós. Sei que há argumentos sérios em favor do voto obrigatório, mas ele existe mesmo é para dar representatividade aos eleitos. Se o voto não fosse obrigatório, cada eleito poderia ostentar apenas alguns poucos votos e não poderia abrir a boca para, também em seu próprio benefício, gabar-se de representar milhões ou centenas de milhares de cidadãos. Isso mesmo, mas, de qualquer forma, é a parte que nos cabe neste latifúndio e, assim, desfrutemos dela o quanto possamos, para o que um dia ensolarado e jovial contribuiria muito.

Eis o brasileiro saindo para votar, ação que, não faz tanto tempo assim, ele só conhecia de ouvir falar, apesar de sempre discuti-la com vigor. Uma das discussões mais recorrentes é sobre se sabemos votar. Minha opinião é que não, a começar por mim mesmo, que errei a mão feio várias vezes, desde até antes do tempo em que existia PT e Lula ainda não tinha mostrado, como já fartamente o fez, que não passava de um pelego mesmo, afinal. Bom menino, me levou no beiço, levou uma porção de outros otários no beiço, meteu todo mundo na algibeira, chegou lá e se fez numa boa - e aqui pra nós, outros.

Agora, pelo que vejo, estamos votando errado até nos Estados Unidos, de onde Barack Obama parece um santo da renovação e da pureza. Independentemente da crise financeira americana, a qual, infelizmente, já atravessou o Atlântico antes que, em mais um golpe de gênio, Lula baixasse uma medida provisória trocando o nome do oceano em questão, assim confundindo os planos de travessia da crise. Com crise ou sem crise, é burrice colonizada e hollywoodiana ficar apoiando candidatos democratas americanos, quando, para nós, os melhores são sempre e invariavelmente os republicanos. Os democratas tendem a fortalecer barreiras protecionistas, cobrir sua economia de subsídios e, em suma, procurar garantir "American jobs", empregos americanos, em detrimento de economias frágeis ou dependentes. Nada contra, pois que eles são americanos e têm que cuidar dos interesses deles mesmos da forma que acham certo, mas não é bom esquecer que foi Nixon, republicano, que iniciou a abertura para a China, por exemplo. E que as preocupações de governos democratas conosco, podem ter certeza, seriam basicamente meter o bedelho na administração dos nossos recursos naturais, principalmente a Amazônia, e nos pregar sermões santimoniais em todos os foros do mundo. Barack, enfim - e uso a expressão propositadamente - é bom para as negas dele, porque nem bom para as nossas negas ele é, não tem por quê.

Mas deixo o irmão Barack para lá e, a caminho da seção eleitoral, sei que me acometerão o que, na falta de melhor palavra, chamo de alegorias. Algumas delas aparecem com grande vividez e persistência, como aquela em que vejo, como num mural sem bordas e se aproximando por todos os lados, multidões barulhentas de candidatos, esgoelando-se em pios como pintos em chocadeiras, ou melhor ainda, filhotes de passarinhos de bicos escancarados, esperando que os pais lhes regurgitem nos papos a comida.

- Piu! Piu, piu, piu, piu! - chilram os pobres bichinhos, chegando a lágrimas de arroubo cívico. - O meu, o meu, o meu! O meu votinho, piu, piu, piu! Não te esqueças de votar naquele que tanto te ama e só pensa em tua felicidade!

São portentosos os mecanismos da Natureza. Aqui se costuma inverter o processo pelo qual de uma feiosa crisálida eclode uma iridescente borboleta de todas as cores. Aqueles pintinhos inocentes e fofos e aqueles filhotes desemplumados e sem jeito logo passarão a experimentar um curioso processo biológico, que primeiro os transforma em quero-queros, em seguida em carcarás e logo em carcarubus, espécie que em nossa política cada vez mais abunda. Na fase adulta, a que chegam rapidamente, não só engordam e enricam como adotam motos e palavras de ordem opostas às anteriores e às previstas em lei. Entre eles, por exemplo, "não representamos os eleitores, mas a nós mesmos e a quem nos interessa"; "não viemos para servir, mas para ser servidos"; "não viemos para ouvir, mas para mandar"; "não viemos para fazer, mas para nos fazer". E assim por diante, nós já conhecemos bem esses fenômenos, de tanto observá-los. E, nos dias que mediarão entre a eleição e a posse, a frase que, na intimidade, mais se ouvirá da parte dos eleitos será "quero tudo a que tenho direito e o a que tenho direito é pouco".

É isso mesmo, é a singularidade de nosso país. Às vezes - não é? - nós nos perguntamos onde achamos tanto ladrão, mentiroso e salafrário. Bem, é só olhar em torno, foi aqui mesmo, não houve necessidade de importação de nenhum outro país ou muito menos planeta. Quando se olha o Brasil, tanto eles como nós somos vistos indistintamente: os brasileiros. Quem olha de fora, muito naturalmente, não distingue. Portanto, somos nós que gestamos e recompensamos os carcarubus e deixamos nosso governo nas mãos deles, já que preferimos ser platéia e nos queixar e, enquanto não formos diretamente prejudicados, não passaremos da satisfação pervertida de quem previu que as formigas iam estragar o piquenique e de fato elas estragaram. E pronto, lá se vai meu santo voto, um sinalzinho eletrônico efêmero, volátil e inconferível. Devia preocupar-me com o que vão fazer dele, não devia? Imagino que sim. Então que façam isso mesmo, isso em que vocês também estão pensando.

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