Arquitetura
A leveza do poeta concreto
A Academia de Ciências da Califórnia culmina um extraordinário
e luminoso conjunto de obras do italiano Renzo Piano
Juliana Linhares
Fotos Divulgação RPW e Tim Griffith/The New York Times |
MONUMENTO DE LUZ E VERDE Floresta tropical sob uma das cúpulas pontilhadas de clarabóias que ondulam como dorso de dragão no prédio da Academia de Ciências da Califórnia (no detalhe) |
Já se passaram 31 anos desde que o arquiteto italiano Renzo Piano e mais dois colegas, Richard Rogers e Gianfranco Franchini, escandalizaram Paris ao projetar o Centro Georges Pompidou, o Beaubourg, uma das mais polêmicas obras da arquitetura do pós-guerra, com seus dutos de ar condicionado e canos aparentes pintados com cores fortes. Até hoje, muita gente ainda não absorveu o Beaubourg. Felizmente, não é o caso de Piano. Aos 71 anos, ele não abandonou a idéia das estruturas aparentes, mas elas foram ficando mais leves, luminosas e, se há um exemplo de arquitetura contemporânea em que a palavra pode ser usada, espirituais. Coberto de todas as honras, ele já espalhou beleza pelo planeta inteiro – centros culturais, prédios, museus, um aeroporto e até o projeto de reconstrução da Potsdamer Platz, em Berlim. Desenhando com vidro e aço, ele tem rigor de engenheiro e alma de poeta. Mestre da transparência e, mais recentemente, da sustentabilidade, acaba de inaugurar a jóia de sua coroa de projetos extraordinários: em setembro, depois de dez anos de planejamento e a um custo de 500 milhões de dólares, a nova Academia de Ciências da Califórnia, em São Francisco, abriu as portas para o público no mesmo lugar onde o terremoto de 1989 condenou a antiga sede.
Situada dentro de um parque, o Golden Gate, a academia é quase uma extensão da natureza que a cerca – exatamente o que Piano queria. "Minha intenção foi erguer o parque, pôr o edifício embaixo e recolocar a vegetação em cima do teto", explicou a VEJA numa conversa entremeada de manifestações de bom humor diante da vida em geral e impaciência com os abusos arquitetônicos em particular (veja entrevista). "O telhado é uma superfície ondulada de 10 000 metros quadrados coberta de plantas e flores. Quem está dentro pode ver o céu e o parque ao redor, porque 90% das paredes são de vidro", descreve. Emergindo do "telhado vivo", duas ondulações como uma gigantesca corcova de dragão. Uma abriga o planetário, cuja base flutua dentro de uma enorme piscina. A outra contém um pedaço de floresta tropical, com pássaros, borboletas e uma rampa que serpenteia pelas árvores, dando a impressão de que está sendo engolida pela selva. Controladas por computador, as "escotilhas" abrem e fecham de modo a manter a temperatura interior agradável, sem necessidade de ar-condicionado. Misto de museu e centro de exposições que reproduz ecossistemas do mundo todo, a academia conta com uma Sala Africana, onde Piano manteve as características arquitetônicas neoclássicas do prédio original, datado de 1934. Lá os visitantes fazem um safári virtual, tateando grandes telas de plasma, e apreciam cinco cenários com animais vivos, incluindo uma colônia de graciosos pingüins africanos. Todas as muitas atrações, de grande apelo visual, são quase como coadjuvantes do personagem principal, o próprio prédio.
Fotos Fred R. Conrad/The New York Times, Franco Origlia/Getty Images e Jean-Pierre Clatot/AFP |
TRANSPARÊNCIA, CURVAS E INTEGRAÇÃO Detalhes à mostra: escadaria da sede do New York Times, auditório do Parco della Musica, em Roma, e, abaixo, a fachada em forma de cadeia de montanhas do Centro Paul Klee, na Suíça |
Devido à carreira global, o genovês Piano tem experiência com arquitetura à prova de terremotos. Em 1994, concluiu o Aeroporto de Kansai, em Osaka, no Japão, cujo terminal de 14 bilhões de dólares, erguido sobre uma ilha artificial de quase 2 quilômetros de extensão, lembra o desenho de uma espaçonave. As formas sinuosas do teto, composto de mais de 82 000 painéis de aço, foram planejadas de acordo com as correntes internas de ar. O aeroporto já passou no teste do tremor, sem nenhum dano. No rol de obras conhecidas de Piano há também o Centro Paul Klee, que aloja 4 000 obras do artista nos arredores de Berna, na Suíça. A galeria é formada por três montanhas estilizadas feitas de vidro e aço onde a luz do sol é difundida por meio de telas translúcidas que rebatem a claridade, para não danificar as obras. A nova sede do jornal The New York Times, inaugurada no ano passado, é um prédio de 52 andares inteiro de vidro transparente e cerâmica, para "refletir as luzes da cidade". "No começo, pediram que eu fizesse um prédio opaco, por motivo de segurança. Aos poucos, fui argumentando que prédios assim passam a impressão de arrogância. Não trazem segurança e agridem quem está fora", conta Piano. No térreo, um enorme jardim pode ser freqüentado inclusive por quem não trabalha no local – como os arquitetos mais esclarecidos, ele é defensor do acesso aberto aos grandes prédios comerciais, mesmo que soe como utopia em certos lugares. Já no Parco della Musica, auditório inaugurado em Roma em 2002, o espaço aberto a visitas é nada menos que um sítio arqueológico descoberto durante as escavações. Piano integrou as ruínas ao edifício, composto de três enormes auditórios em formato de caixa de som. Como criar prédios imensos sem agredir o entorno nem cair no vício do exibicionismo arquitetônico? "Passo horas sentado no chão dos terrenos em que vou construir. A obra precisa estar em sintonia com a atmosfera local", ensina o mestre. "Ela não pode se apropriar do cenário nem intimidar os pedestres. Tem de fazer parte do lugar onde está."
Divulgação |
MESTRE CONSTRUTOR "Para ser bom arquiteto, é preciso também ser humanista e poeta" |
Renzo Piano fala sobre o significado dos museus, o papel da arquitetura contemporânea e os motivos do medo que teve durante algum tempo dos motoristas de táxi de Paris.
O que representa, na sua obra, o novo prédio da Academia de Ciências da Califórnia? Ele foi o ápice da minha busca por leveza e transparência. Além de tratar de ciência, esse museu fica num dos mais lindos parques do mundo, o Golden Gate, em São Francisco. Minha intenção era que os visitantes se sentissem parte daquela natureza toda. Do interior do prédio, eles tinham de ver as nuvens, sentir o cheiro das árvores e a luz do sol batendo na pele. Museus em geral são lugares escuros e intimidantes. A academia é exatamente o contrário. Os museus desempenham hoje o papel das antigas catedrais. Não no sentido religioso, claro, mas por serem lugares visitados por multidões e que precisam reunir características como acolhimento, silêncio e estímulo à contemplação.
Como deve ser uma casa, hoje? Casas são projetadas e sonhadas para oferecer abrigo. A sensação de segurança é parte integrante da idéia emocional do lugar onde se mora. Também faz parte dessa sensação ter uma casa que se pareça com o dono. Mesmo as casas mais modestas precisam ser um reflexo de seus moradores; caso contrário, não funcionam como abrigo nem passam a sensação de intimidade. Para ser um bom arquiteto, é preciso também ser humanista e poeta. Em alguns casos, também é importante conhecer as técnicas de construção.
O que não funciona bem na arquitetura urbana contemporânea? No passado, as cidades tinham proporções e texturas equilibradas. Hoje, os arquitetos sonham construir o prédio mais alto ou o mais high-tech. Esses meninos novos se sentam na frente de computadores e projetam formas novíssimas com um clique. Para mim, a questão não é construir novas formas, e sim imprimir um uso real a elas.
Como o senhor recebe as críticas que se fazem até hoje ao Centro Georges Pompidou? Foi um projeto muito arrojado para a época. No começo, os parisienses torceram o nariz. Devo confessar que, durante quase dez anos, tive medo de assumir para os taxistas locais que eu era o arquiteto. O que quisemos fazer no Beaubourg foi uma paródia do high-tech, com os canos expostos e as cores berrantes.
Quais são as obras arquitetônicas de todos os tempos de que o senhor mais gosta? A cúpula da catedral Santa Maria del Fiore, em Florença, construída no século XV. É uma fantástica combinação de beleza e arquitetura. Também gosto da Muralha da China. Ela me lembra desenhos de montanhas.