Entrevista:O Estado inteligente

sábado, janeiro 19, 2008

Roberto Pompeu de Toledo

Trajetória de um sessenta-e-oitão
O percurso emblemático de José Dirceu, das lutas
estudantis à operação de transplante de cabelos

É engraçado comemorar o aniversário de um ano, mas, já que foi aberta a temporada de comemoração dos quarenta anos do ano de 1968, José Dirceu vem a calhar. Figuraça, esse Dirceu. Na ampla reportagem a ele dedicada pela revista Piauí – uma das melhores peças jornalísticas dos últimos tempos –, ele é flagrado pela repórter Daniela Pinheiro em sua quarta encarnação, a de "consultor". O que faz exatamente um consultor é um dos pontos obscuros deste nosso mundo globalizado. O que dá para concluir, com base no literal significado da palavra, é que um consultor dá consultas. Dirceu dá consultas a empresários que variam do mexicano Carlos Slim, um dos homens mais ricos do mundo, ao brasileiro Nelson Tanure, de tortuosos negócios no ramo industrial e na mídia.

Em 1968, se topasse um Slim ou um Tanure pela frente, o mínimo que José Dirceu faria é o que tanta gente hoje faz a ele, nas ruas, nos restaurantes e nos aeroportos, segundo flagrou a reportagem da Piauí: xingaria de safado, pilantra e corrupto. Em 1968, Dirceu era presidente da União Estadual dos Estudantes (UEE) de São Paulo. Participou de uma das épicas batalhas da época, a luta entre os estudantes da USP e do Mackenzie, na Rua Maria Antônia. Também estava entre os mais de 800 estudantes presos quando a polícia estourou o congresso clandestino da UNE em Ibiúna, no interior de São Paulo. Hoje o consultor Dirceu escolhe, como leitura de viagem, A Era da Turbulência, de Alan Greenspan, o ex-presidente dessa fortaleza suprema do capitalismo que é o Fed, o banco central dos Estados Unidos.

O mundo em 1968 – pode parecer inacreditável – não tinha internet nem telefone celular. Para dizer toda a verdade, ó jovens, não tinha nem – vergonha! – TV em cores. Mesmo com essas sérias deficiências, 1968 foi um ano maravilhoso (além de horrível) e cheio de promessas (além de trágico). Foi o ano do Maio na França, que derramou suas utopias mundo afora, da ofensiva do Tet, que assinalou o começo do fim da intervenção americana no Vietnã, da Primavera de Praga e seu sufocamento pelos tanques soviéticos, do assassinato de Bob Kennedy e de Martin Luther King. No Brasil, as pulsões libertárias expressas nas passeatas, na música, no teatro e no cinema desaguariam no apagão do Ato Institucional Nº 5, no dia 13 de dezembro. O ano de 1968 foi tão marcante que em francês se cunhou uma palavra para nomear as pessoas típicas desse ano, marcadas para toda a vida pelas idéias e experiências do período – são os "soixante-huitards". Como verter para o português – sessenta-e-oitenses?, sessenta-e-oitões?

José Dirceu é um sessenta-e-oitão como poucos. Sua trajetória, nesses quarenta anos, combina as promessas e os desastres que já estavam lá no ponto de partida, no próprio 1968. À sua primeira encarnação, a do revolucionário, sucedeu-se a do comerciante pacato do interior do Paraná – o período em que viveu clandestino, sem revelar a verdadeira identidade nem para a mulher. A terceira encarnação, a do militante do PT, mistura a glória da presidência do partido e do ministro mais forte do governo à miséria do "chefe da quadrilha" do mensalão. A quarta é a do consultor, mas não se pense que o livro de Alan Greenspan debaixo do braço represente uma conversão. Emoção mesmo ele sente quando pisa em Cuba, e respeito mesmo tem pelo comandante Fidel Castro. É tudo muito misturado, muito confuso.

No único momento em que aparece comovido, na reportagem da Piauí, ele diz: "Meu nome, o que vai ficar para a história, tudo isso é muito complicado. Eu estou muito pessimista, muito pessimista quanto ao meu futuro". Eis o sessenta-e-oitão confrontado com a esperança e a realidade destes últimos quarenta anos, a revolução em que um dia pôs tanta fé e a queda do Muro de Berlim, o sol da liberdade que despontou com o fim da ditadura e a mesquinha política do é-dando-que-se-recebe da etapa seguinte, a conquista do poder e o subseqüente encontro marcado com a corrupção, o auge do prestígio e seu esboroamento nos xingamentos de "safado". Tudo tão confuso... Tão misturados, esperança e frustração, sonho e pesadelo... Melhor não pensar. Na semana passada, José Dirceu estava em Pernambuco, para uma operação de transplante de cabelos. O sessenta-e-oitão entrava neste 2008 em que se comemoram os quarenta anos do sacrossanto 1968 resistindo à calvície.

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E por falar em 1968... Se havia algum idealismo no início das Farc, nos anos 60, ele se esboroa, quarenta anos depois, na realidade dos reféns acorrentados em árvores, largados doentes ou obrigados a penosos deslocamentos, e nos métodos de fazer dinheiro com os resgates de seqüestros e com a associação ao narcotráfico. Completa-se outra trajetória emblemática. Comparadas aos movimentos de esquerda dos anos 60, inclusive elas próprias, na origem, as Farc são como o império centro-africano de Bokassa I comparado ao de Napoleão.

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