A cada nova apresentação do criador da Apple, os competidores apostam que, dessa vez, Steve Jobs vai chutar para fora ou mandar na trave. Mas o zen-paranóico continua com uma taxa de acerto de 100% ao lançar produtos que voam no mercado
Carlos Rydlewski
Jochen Siegle/Polaris/Other Image |
MacBook Air, o mais leve e mais delgado: quando Jobs vai errar? |
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"Oi, eu sou um PC."
"Oi, eu sou um Mac."
Essas duas apresentações são seguidas de diálogos fulminantes em que o certinho PC, representando todos os computadores pessoais não-Mac do mercado, é trucidado pelo maneiríssimo Mac. Elas fazem parte de uma das campanhas publicitárias mais funcionais da história da propaganda. As peças retratam com precisão o terremoto que a Apple está promovendo no mundo dos computadores, especialmente entre os jovens consumidores. Foi com um desses hilariantes jograis que Steve Jobs, o homem do renascimento da indústria de alta tecnologia e chefão da Apple, abriu no Macworld 2008, em São Francisco, na semana passada, mais uma de suas já lendárias keynotes, palavra inglesa que designa discursos que dão o tom e sintetizam a mensagem principal de um evento. No filminho de abertura, o personagem PC diz que teve um ano passado terrível, mas que estava cheio de esperanças para 2008. Ao que o personagem Mac responde: "Ah, sei, então você vai copiar tudo o que nós fizemos em 2007". Corta. Gargalhadas na platéia. O foco, então, se concentra na figura de camiseta preta de mangas compridas arregaçadas, controle remoto na mão, óculos redondos e calça jeans. Ao lado de um Mac no palco, a infalível garrafa de água mineral. Clássico Jobs.
O Blu-Ray venceu
O Blu-ray, da Sony, da qual a Apple é adepta, venceu a disputa pelo padrão de vídeo de alta definição que vai suceder ao DVD. A Warner Brothers anunciou a adesão a esse formato de disco, que já conta com o apoio da Disney, 20th Century Fox, MGM e Lionsgate. A parada está decidida. Ao sistema concorrente, o HD-DVD, sobra o prêmio de consolação de talvez se firmar como o mais eficiente sistema de estocagem de dados para computadores pessoais. O desfecho da luta lembra o nocaute de tempos pré-históricos, quando ainda existiam videocassetes e o sistema VHS mandou o Betamax mais cedo para o museu. |
Desde que Steve Jobs, fundador da Apple, voltou à companhia em 1997, depois de um exílio involuntário de quase doze anos, suas keynotes têm sido o evento mais esperado do instável e paranóico mercado de tecnologia digital americano. A esperança dos competidores é sempre a mesma. Agora ele vai errar. Mas Jobs continua acertando. Há anos ele dita o ritmo e o rumo das inovações. A série de acertos não tem paralelo na indústria.
Apple/Getty Images |
O Mac Cube: parecia flutuar no ar, mas não durou muito |
Primeiro foram os Macs coloridos, em seguida o inefável Cube (um computador em forma de cubo, sem ventoinhas barulhentas, com base de acrílico transparente e que parecia flutuar no ar) e depois a série invicta de iPod, que abriu caminho para o iPhone. Todos eles se tornaram objeto de culto. Na semana passada foi a vez do MacBook Air, o mais delgado, leve e irresistível computador portátil da história (1,9 centímetro de espessura e 1,3 quilo). Seu modelo mais caro custa 3 100 dólares (preço bem mais alto do que o de laptops de especificações equivalentes) e carrega uma inovação tentadora para a fiel vanguarda da tecnologia de consumo. Os saudosistas devem se lembrar de que, quando os rádios a válvula começaram a ser substituídos por aparelhos com transistores nos anos 50, os novos modelos traziam uma inscrição gravada que dava orgulho ao possuidor: solid state. Pois o MacBook Air dá essa mesma sensação de progresso, de estar pari passu com o que existe de mais novo no mercado. Uma versão do aparelho não tem disco rígido, que foi substituído por um "solid-state drive". Traduzindo, sai uma engrenagem móvel pesada e consumidora de energia, entra uma peça única, sólida e silenciosa. Mais um clássico Jobs.
Bem, o leitor que chegou até aqui pode se intrigar com o fato de que a reportagem não se diferenciou muito do que seria uma propaganda da Apple. Ou seja, só foram listadas coisas positivas sobre Jobs e seus produtos. Não é difícil encontrar defeitos em ambos. Jobs é arrogante, explode com freqüência e destrata seus funcionários com o despudor de um senhor de escravos. O iPod, o iPhone os Macs e agora o Air são produtos que, característica por característica, podem ser batidos por concorrentes melhores e mais baratos disponíveis no mercado. O que não se pode negar, no entanto, é que cada vez mais os consumidores desprezam essas comparações tópicas e entram na fila das lojas Mac nos Estados Unidos e na Europa para desfrutar a experiência de ter um iPod ou um iPhone. A revista inglesa The Economist escreveu no ano passado que o iPhone estava sendo chamado na blogosfera de "Jesus Phone"! Pichações em muros na Califórnia dão conta de que "Jobs is God" ("Jobs é Deus"). Blasfêmias. No entanto, são vendidos com sucesso na internet kits de roupas e adereços que permitem a qualquer um se vestir como Steve Jobs. "Pena que não adianta aos outros chefões do Vale do Silício comprar o kit. Eles não podem ser Jobs", diz Larry Ellison, dono da Oracle, amigo do guru da Apple e ele próprio uma lenda viva do mundo digital.
Mas o que faz de Jobs Jobs? "Na Apple, quando as pessoas têm a visão de um bom projeto, elas o perseguem sem medir esforços", disse a VEJA o diretor de design da Philips, Oscar Peña. Outro especialista, Mark Rolston, da californiana Frog Design, complementa: "Na grande maioria das empresas não é isso o que ocorre. Em geral, um produto é definido a partir do que é mais barato ou, pior, com base no que é mais conveniente". Em uma de suas raras entrevistas, concedida à revista Time, Steve Jobs resume o seu segredo e o da Apple: "Todo fabricante de automóveis gosta de exibir seu ‘carro-conceito’, que deixa a imprensa e os consumidores de queixo caído. O problema é que, quando ele finalmente é lançado, quatro anos depois o carro é um lixo. O que acontece? Ora, o designer tem uma peça maravilhosa nas mãos, mas os engenheiros simplesmente não conseguem fabricá-la em série. Na Apple, nós conseguimos". Como? Não tente o truque em sua própria empresa. "Os engenheiros vêm com 38 razões para matar nossas melhores idéias, e eu digo a eles que não aceito ‘nãos’ porque eu sou o chefe e sei que aquilo pode ser feito como eu quero", disse Jobs na mesma entrevista. Talvez seu conselho mais sábio tenha sido o que circula em vídeo no YouTube, dito aos formandos da Universidade Stanford em 2005: "Stay hungry; stay foolish". Como entender a mensagem? Antes um pouco de contexto. Jobs, de 52 anos, é um filho adotivo que abandonou a universidade no 2º ano e foi hippie. Continua zen, adepto da meditação e confiante em seu instinto. Para isso funcionar é preciso "continuar faminto e meio louco".
Mas é bom lembrar que nesse mercado "só os paranóicos sobrevivem", na máxima de Andy Grove, fundador da Intel, a maior fabricante de chips de computadores. Jobs é descrito como o mais paranóico de todos. O certo é que funciona essa mistura de zen com paranóia, foco e objetividade. Empresa mais inovadora do planeta, a Apple figura no modestíssimo 130º lugar no ranking das companhias que mais investem em pesquisa e desenvolvimento feito pela consultoria Booz Allen. Ela coloca 710 milhões de dólares por ano no desenvolvimento de novidades. Em recursos, perde de longe para marcas como a Toyota (primeiro lugar, com gastos anuais de 7,7 bilhões de dólares), a Ford (terceiro, com 7,2 bilhões de dólares) e a Microsoft (oitavo, com 6,5 bilhões de dólares). Mas em resultado... Bem, basta lembrar o comercial do PC x Mac. A vida é injusta principalmente com a Ford e a Microsoft, que gastam tanto e não colhem um décimo dos triunfos inovadores da Apple. A empresa de Jobs se organizou de maneira que contraria a sabedoria convencional do capitalismo e do Vale do Silício, o centro do sistema solar das inovações digitais, que manda concentrar-se apenas em um ou dois setores. A Apple desenha e fabrica seus aparelhos, desenvolve o sistema operacional e os programas dos computadores – e vende ela mesma na internet as músicas e os filmes pela iTunes Store. ("O que é isso, a Rússia soviética?", pergunta a revista Time.) Em seu número da semana passada, outra revista, Business -Week, publica uma reportagem em que famosos designers de produtos dos Estados Unidos foram desafiados a imaginar como ficariam diversos objetos de uso comum caso fossem projetados pela Apple. Dois exemplos: o carro teria painel "sensível ao toque". A câmera de vídeo obedeceria a comandos de voz e mandaria os filmes direto para o YouTube. Se mantiver a taxa de acerto por mais alguns anos, Jobs poderá ampliar o escopo de sua campanha publicitária para alguma coisa assim: "Oi, eu sou convencional". "Oi, eu sou um Mac".
Ataque ao império do Itunes
Na semana em que roubou a cena mais uma vez, com o MacBook Air, Steve Jobs também teve uma má notícia. A Amazon anunciou que no mês que vem lançará um serviço próprio de venda de arquivos musicais pela internet. Com isso, a maior livraria virtual do mundo, que desde setembro mantinha uma parceria com o iTunes, passará a ser sua concorrente direta. E que concorrente: com 72 milhões de clientes, a empresa de Jeff Bezos é tida como a única capaz de fazer frente à loja da Apple. O novo serviço virá com uma promoção pesada: será oferecido nada menos do que 1 bilhão de downloads gratuitos. Na Amazon, as músicas custarão 10 centavos menos que as do iTunes (que cobra 99 centavos). A livraria fez ainda acordos importantes com as grandes gravadoras, que, surpreendentemente, concordaram em disponibilizar seus títulos sem um dispositivo de proteção de direitos autorais. Essa era uma idéia defendida por Jobs, mas que a maioria das gravadoras rechaçava. Se deram o braço a torcer é porque já não têm como lutar contra a realidade. Em 2007, as vendas de CDs caíram 19% só nos Estados Unidos. As gravadoras também enfrentam um êxodo de artistas importantes. Madonna saiu da Warner no fim do ano passado. Na última semana, foi a vez de os Rolling Stones deixarem a EMI – que se prepara para demitir 2 000 funcionários. O inferno das gravadoras não tem fim. Mas, para elas, é preferível um mercado de distribuição de música digital em que haja concorrência, e não apenas o colosso Apple. Atualmente, o iTunes é detentor de 80% desse mercado. |