Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, janeiro 21, 2008

Neste jogo do contente, todos se dão mal

Marco Antonio Rocha


"Le bon sens est la chose du monde la mieux partagée; car chacun pense en être si bien pourvu que ceux même qui sont les plus difficiles à contenter en toute autre chose n?ont point coutume d?en désirer plus qu?ils en ont." (René Descartes)

É bem pouco provável que o filósofo, matemático e geômetra francês, nascido no apagar das luzes do século 16, escrevesse a mesma frase se vivesse no mundo de hoje, particularmente se se empenhasse em conceber "um método para bem conduzir a razão e procurar a verdade..." no eletromagnético campo das finanças. E nem é preciso ser filósofo para perceber que o bom senso vem sendo uma das coisas do mundo menos cultivada e partilhada hoje em dia. Mais preocupante ainda é que isso se verifica em larga escala no mundo das finanças, onde essa qualidade deveria imperar.

Na última quinta-feira, o articulista do The Washington Pos Harold Meyerson escrevia neste jornal (Dessa vez, os velhos remédios não funcionarão, B4) que está mais do que na hora de cobrar "transparência e prudência das instituições financeiras que vêm especulando com o dinheiro e a vida dos outros". Elas sempre viveram de especular com o dinheiro e a vida dos outros. Mas não com a irresponsabilidade e o nonsense que exibem hoje em dia, numa desenvoltura que, há não muito tempo, daria cadeia certa para seus dirigentes ou, no mínimo, proibição de atuarem no setor por vários anos. Alguém ainda se lembra de Tony Gebauer, o "criativo" aplicador de dinheiro alheio - inclusive de empresários brasileiros - de Nova York, que terminou no xilindró, como se dizia antigamente? Isso não acontece mais.

A falta de cadeia certa e prolongada para aventureiros do mercado financeiro pode não explicar tudo das turbulências e sobressaltos que esse mercado passou a desencadear na economia mundial produtiva, com freqüência cada vez mais perturbadora. Mas está, certamente, entre as causas principais. As famosas expectativas racionais que os doutos em economia estudavam, e de certa forma prezavam, em tempos mais remotos, se foram transformando nas exuberâncias irracionais que tanto incomodaram Alan Greenspan e agora já se mostram decididamente como estupidezas criminosas.

Mais uma vez os trabalhadores assalariados do mundo inteiro, os pequenos e médios empresários do comércio e da indústria, os produtores rurais, os construtores de casas ou estradas, enfim, os verdadeiros agentes econômicos, as pessoas que fazem a economia andar, os criadores de riquezas por excelência estão diante de um fantasma que é, ou que será, a recessão nos EUA, cuja economia há pouco tempo marchava para a frente e para o alto.

Ben S. Bernanke, presidente do Federal Reserve (Fed, o banco central norte-americano), falando na quinta-feira perante a Comissão de Orçamento da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, dava-nos a temperatura e as causas mais visíveis da febre que assola, basicamente, algumas grandes instituições financeiras daquele país, que, "desde o último verão - dizia ele -, têm estado sob considerável tensão". Ele mencionava os mercados financeiros "nos Estados Unidos e num número de outros países industrializados". Não se lembrava que essa "tensão" se espalha por "outros países industrializados" a partir do seu país, onde um governo irresponsável acumula déficits assombrosamente irresponsáveis, onde meia dúzia de bancos irresponsáveis fez empréstimos hipotecários irresponsáveis para quem não podia mesmo pagá-los e onde autoridades, embora prevendo o cenário de insolvência que se aproximava (como foi o caso do seu antecessor no cargo), pouco ou nada fizeram para impor alguma dose de governança judiciosa na gaiola das loucas que é hoje Wall Street.

O "mercado" - essa entidade abstrata, cortina da sala de jogos do mundo financeiro moderno, que lembra as das "salinhas" de carteado dos cabarés de estrada - decepcionou-se com a fala de Bernanke. Por que será? Porque ele não disse que compraria "o mico", ou seja, que de alguma maneira o Fed ofereceria uma montanha de dinheiro para tapar o rombo dos bancos. E, entenda-se bem, não é que essas instituições estejam perdendo dinheiro pelo ralo. Estão é ganhando muito menos do que esperavam ganhar. E por quê? Porque emprestaram muito mais do que seria prudente e para devedores que apresentavam risco muito maior do que seria aceitável.

É uma velha história. Todo mundo nesse mercado sabe quando a bolha da estupidez começa a crescer e sabe qual vai ser o desfecho. Mas todo mundo também acha que vai ser sabido o bastante para dar o fora enquanto é tempo. No final ninguém escapa, pois mesmo os que deram o fora antes do estouro continuam com o mico de não ter onde guardar o "lucro".

Bernanke, além de não jogar a bóia na água, ainda bateu com os remos na cabeça de quem está tentando não se afogar. A "crise das hipotecas", disse ele, não só subtraiu um ponto de porcentagem do crescimento do PIB americano, no terceiro trimestre de 2007, como cortou ainda mais o crescimento no último, "e pode também continuar a inibir o crescimento por uma boa parte deste ano". Acrescentou que informações mais recentes indicam que "os riscos para o crescimento se tornaram ainda mais pronunciados".

E, no entanto, antes disso, nem mesmo a alta dos preços do petróleo conseguira reverter a marcha favorável das economias reais de todo o mundo. O clima de sinistrose atual resultou do aventureirismo de um setor onde os xerifes só o que fazem é passar a mão na cabeça dos delinqüentes. E Bush acaba de prometer US$ 150 bilhões para acalmá-los... Se der certo, mais uma vez a irresponsabilidade sairá premiada.

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