Artigo - |
O Estado de S. Paulo |
9/1/2008 |
O Partido dos Trabalhadores (PT) é um aplicado discípulo dos coronéis da Guarda Nacional de antanho. Sua Bolsa-Família, por exemplo, é uma versão contemporânea do ancestral método de dar o peixe, em vez de ensinar o pobre a pescar, que os chefes políticos regionais da República Velha usavam. Não apenas para assegurar os préstimos do agraciado em troca de um punhado de farinha, mas também para mantê-lo sob jugo permanente: o homem capaz de produzir o próprio alimento pode conquistar a autonomia e, depois, negar-se a servir ao barão. Mas na adaptação do feudalismo coronelista ao figurino socialista, que os petistas dizem vestir, há também o abandono de velhas práticas que garantiam a solidez das relações entre manda-chuvas e súditos. Uma é a do fio de bigode: entre coronéis o empenho da honra valia mais que documento. No neocoronelismo petista a palavra é vaga e a promessa, vã: obtida a regalia, não se cumpre a contrapartida ofertada. Não se trata de algo novo, posterior à ascensão do grupo ao poder, mas de uma práxis adotada desde a pré-história petista na era heróica do sindicalismo autêntico. O problema é que, ao usar na gestão pública essa tática de se comprometer e voltar atrás para tirar vantagem nas negociações para aumentar salário, melhorar as condições da categoria ou parar greves, o grupo que está no poder federal não leva em conta o fato de que aqui vige uma democracia. E na democracia moderna, apoiada em instituições impessoais, e não no carisma dos líderes, o compromisso não se limita ao fato de a palavra real ser irreversível (afinal, “palavra de rei não volta atrás”). Mas vai além disso: é a garantia de confiabilidade, sem a qual a negociação política perde o valor. Talvez o presidente Luiz Inácio Lula da Silva nem precisasse assegurar que não criaria novo imposto nem elevaria a alíquota de algum já existente para obter o que precisava naquele momento - a renovação da Desvinculação das Receitas da União (DRU). A oposição se tinha concentrado na luta contra a prorrogação da Contribuição Provisória sobre a Movimentação Financeira (CPMF) e deu a impressão na votação seguinte de que nem sabia direito como votar. O discurso monolítico da rejeição ao imposto do cheque diluiu-se num arrazoado confuso na votação posterior. Mas o fato é que, precisando ou não, o presidente prometeu o que não faria para conseguir o que pretendia. Ao baixar um pacote no primeiro dia sem o jorro da fonte da CPMF nos jardins do erário, o presidente fez muito mais que faltar à palavra dada e quebrar a promessa: ele cuspiu nas instituições e jogou areia nas engrenagens da máquina que faz a democracia funcionar. Não foi a oposição que lhe negou os três quintos dos votos do plenário para prorrogar até 2011 a arrecadação garantida de R$ 40 bilhões por ano: foi o Senado. Ou seja, o Poder Legislativo. Aliás, o Poder republicano por meio do qual o povo é diretamente representado. Mais que voltar atrás na palavra de rei, ele desrespeitou uma decisão da sociedade, representada pelos senadores. Os milhões de votos que teve da mesma sociedade não lhe podem servir de pretexto para tanto, pois a regra do jogo que ele aceitou jogar quando jurou respeitar a Constituição prevê a autonomia e a soberania dos Poderes. Da mesma forma que congressistas e juízes não estão autorizados a interferir em atos do Executivo, não é lícito que o chefe deste Poder ignore decisões dos parlamentares só porque estas o desfavorecem. Por mais que solapem o crédito ou usurpem do cidadão os escassos ganhos que havia reconquistado com a decisão de não prorrogar a CPMF, as medidas anunciadas na virada do ano merecem repulsa e revolta muito mais pelo atentado que cometem contra o Estado de Direito. Sempre fiel a seu estilo, o funcionário encarregado de divulgá-las, Guido Mantega, ministro da Fazenda, disse que o aumento do IOF no lugar da prorrogação da CPMF era a troca de “seis por meia dúzia”. A frase reduz ao rés-do-chão a brutalidade da intervenção autoritária do governo a que ele pertence, mas não era necessária para que se tivesse noção do atentado cometido contra as instituições democráticas por um grupo que, no poder, confunde popularidade com legitimidade e prestígio com licença para exercer o arbítrio. O índice de aprovação de Lula, que chegou a 65% na última medição, não deveria autorizar pequenas malandragens do gênero, mas fortalecer ainda mais o senso de responsabilidade que um estadista precisa ter numa situação dessas. Mas, se a esperteza dele é lamentável, mais execrável ainda é a incompreensão de setores do Legislativo, que, em vez de reagirem à altura à afronta, oferecem o flanco para que o chefe do Executivo o chute de novo. Foi preciso que, uma vez mais, uma voz autorizada do Supremo Tribunal Federal (STF) repusesse as coisas em seus devidos lugares para que um partido da oposição - o DEM - pelo menos franqueasse ao Judiciário a oportunidade de restaurar os direitos mínimos da cidadania, esbulhados e achincalhados pelo Estado estróina. Longe vão os tempos em que parlamentares alinhados politicamente com o regime militar reagiam de maneira altiva às investidas autoritárias dos hierarcas do Planalto. Viciado em dizer amém aos poderosos que têm a chave do cofre da Nação, o Parlamento ainda não se ergueu para se impor, mas se mantém de cócoras para continuar devorando as migalhas do banquete em que os donos do poder republicano se refestelam. A ação direta de inconstitucionalidade do DEM e o decreto de Álvaro Dias (PSDB-PR) tornando as medidas sem efeito são indícios de que há, pelo menos na oposição, sinais de vergonha na cara no Congresso e o cidadão não está de todo indefeso. Se o ministro Marco Aurélio Mello estiver certo, o STF a ajudará a acender uma vela na treva. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, janeiro 09, 2008
José Nêumanne E quando seis não são meia dúzia?
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