Causa angústia lembrar que vivemos num território onde o exemplo de quebra da ordem vem de cima. Se assim é, parece justificada a cadeia de ilegalidades e descrédito que se multiplica em todas as esferas. Não é de admirar que a fala do ministro José Gomes Temporão tenha caído no vazio. Depois de descartar uma epidemia de febre amarela, as filas aumentaram nos postos de vacinação. Da mesma forma, após dar o dito pelo não dito em matéria de novos impostos, Luiz Inácio navegou na onda da expressão oca ao dizer que o apagão não passa de boato. Ora, já operamos em ritmo de apagão, frisa Mário Luiz Menel, com a autoridade de presidente da Associação de Investidores em Autoprodução de Energia Elétrica, dando vazão ao sentimento do diretor-geral da Agência Nacional de Energia Elétrica, Jerson Kelman, que já sinalizara na direção de um racionamento de energia. Na onda da esculhambação geral, expandem-se o cinismo, o despropósito, a leniência e as inverdades. Cínica e despropositada continua a ser, por exemplo, a atitude do Executivo em relação às medidas provisórias (MPs): quanto mais execradas, mais o governo delas abusa. O acinte ao Parlamento, nas MPs editadas sem os requisitos de urgência e relevância, engrossa o dicionário da banalização.
Nunca a caneta foi usada de modo tão descarado. A idéia do presidente de criar um gigante nacional do setor de telecomunicações para enfrentar os espanhóis da Telefônica e os mexicanos da Telmex até se pode fundamentar em razões estratégicas. Trata-se, porém, de abuso mudar o Plano Geral de Outorgas com um simples decreto, sem submetê-lo a um amplo debate social e ao crivo do Congresso. Os casos estrambóticos, de tão recorrentes, vão-se tornando comuns. Perdeu-se a noção de prioridades. Escândalos escabrosos já não arrebentam a boca do balão. A locução se fecha. Com posições cada vez mais isoladas, o Palácio do Planalto engrossa o fio intervencionista que estreita os limites de nossa democracia. As conseqüências se fazem sentir na crescente tensão entre os entes federativos. Olhe-se para a dissonância que se trava em torno do orçamento dos Poderes. O acirramento chega ao clímax, a ponto de exibir a irritação de ministros de tribunais superiores, outrora sisudos, contra a corte palaciana. Barganhas se sucedem e negociações entram em compasso de espera. Consolida-se a imagem de um lulismo auto-suficiente, arrogante, prepotente, exercendo um poder absoluto que não presta contas a ninguém. O caso dos cartões corporativos é uma aberração. A imagem é a de um cheque em branco usado sem critério. O saque direto na boca do caixa eletrônico, no ano passado, atingiu o montante de R$ 58,7 milhões, de R$ 75,6 milhões contabilizados. Para onde foi essa dinheirama?
Quanto à expansão da corrupção, soa estranha a hipótese de que ela se assemelha à massa de pão, que quanto mais se bate, mais cresce. Como justificar seu crescimento, se o atual governo eleva a voz para enaltecer o mais feroz combate às negociatas e aos cambalachos de que se tem notícia na história deste país? As operações policiais e a ação do Ministério Público, elogiáveis quando despidas da pirotecnia, deveriam redundar no desmonte do poder invisível e no esfacelamento da malha clandestina incrustada na administração pública. Ao contrário, porém, a corrupção se expande. Só há uma explicação. Como a teia corrosiva abriga duas bandas, a de corruptores e a de corrompidos, um ambiente favorável lhes dá alento. Quem propicia o ambiente favorável?
Por último, convém registrar o despudorado financiamento público para as campanhas eleitorais deste ano. Milhões serão despendidos para a administração federal fazer a louvação dos programas assistencialistas. O maestro da orquestra, o presidente da República, fará as massas carentes cantarem, em uníssono, o hino das glórias recebidas. No ano passado, a conta da glorificação chegou perto de R$ 1 bilhão. Este ano, milhares de prefeitos aliados ao governo serão eleitos, formando gigantesco capital eleitoral para 2010. Isso é financiamento com dinheiro do povo. Quem tem máquina pública a favor já entra com um handicap na campanha.
Extravagâncias como essas fazem nossa democracia escorregar pelos desvãos das ilicitudes. O presidente do TSE, Marco Aurélio Mello, denuncia o abuso do poder econômico nas campanhas e diz que a publicidade governamental gera "desequilíbrio". E tudo fica por isso mesmo. Nesse cenário de falta de pudor, uma comovente expressão de amor à honra, manifesta pelo vice-presidente da República, José Alencar, soa como a última nesga de esperança: "Você não tem de ter medo da morte. Você tem de ter medo é da desonra."