Entrevista:O Estado inteligente

domingo, janeiro 20, 2008

FERREIRA GULLAR

Dentro da noite


Guevara sonhou errado, na hora errada, no lugar errado, por acreditar que quem sabe faz a hora

A PRIMEIRA vez que vi a noite, se bem me lembro, foi na esquina da rua da Alegria com Afogados, em São Luís. Pode ser que já a tivesse visto antes, mas não me dera conta porque, na vida, só conta o que nos espanta. E foi naquela esquina, na porta da quitanda de Newton Ferreira, meu pai, que a noite se revelou a mim, quando ergui os olhos, inadvertidamente, por cima das platibandas das casas.
A rua da Alegria, para quem não sabe, começa na avenida Silva Maia e desce na direção do largo da Cadeia, que esse era então o seu nome, quando ali situava-se a penitenciária. Nossa casa ficava perto da quitanda, na primeira quadra entre a avenida e a rua dos Afogados. Foi nela, no quintal dela, que posei para a única foto em que apareço menino, junto com alguns de meus irmãos, irmãs e minha mãe. Como meu pai não aparece, ele é quem deve ter sido o fotógrafo. Estou ali, sentado numa cadeira, de meias e sapatos, os pés não chegavam a tocar o chão.
Mas até aquele momento, não havia reparado na noite, que só vi de fato, como já contei, ao sair da quitanda e olhar para o céu, que estava cravejado de estrelas a brilhar como se fosse o rastro de um cometa. Fiquei deslumbrado e temeroso, pois era como se uma força estranha quisesse me puxar junto com elas para o infinito do mundo.
Foi só um instante. Pois logo meu pai saiu da quitanda, trancou a porta com chave e tomamos o rumo de casa, onde a família nos esperava para o jantar. Depois de comer, ouvimos um programa da rádio Nacional com Vicente Celestino, e então fui para minha rede, armada junto à janela que dava para a rua. Mas não resisti: abri a janela, deixei que o clarão da Via Láctea dourasse meu rosto e saí voando.
Isso foi em 1938, quando mal completara oito anos de idade. No dia seguinte, pela manhã, estava normalmente observando Bizuza, na cozinha, a socar farinha de mesa com camarão e gergelim torrado para o cuxá. Não demorou muito para que me tornasse moleque de rua a vagabundear pela cidade, roubando copos em botecos e jogando bilhar na zona do meretrício, na rua da Palma. Mais tarde, chegariam os soldados ianques para ocupar a base aérea do Tirirical e tomar cerveja no Motobar.
Nessas minhas andanças noturnas pela cidade, tinha plena consciência de que o fazia sob o fulgor da Via Láctea, que me acompanhava pelos becos e ladeiras, por onde vagava sem saber o que viera fazer no mundo.
Mas foi durante umas férias no sítio de tio Felinto que pude perceber o silêncio infinito da noite cósmica, que de tão intenso me deixava ouvir até o rumor da grama crescendo sob meu corpo, ali recostado junto ao curral. Entendi que a noite não era apenas estrelas no céu, mas também o abafado vozerio dos vegetais, que não falam nem brilham, mas pulsam na escuridão que lhes oculta as cores como o zumbido dos pequeninos bichos a trafegarem nos ramos.
A escuridão é o estado natural do mundo, e a luz é pouca, ainda que as galáxias sejam feitas de matéria luminosa e incandescente a explodir no vazio do espaço sem que se ouça.
E dali, onde estava, junto ao curral, no Maranhão, nada se ouvia daquelas explosões de gases e matéria estelar. No escuro da noite provinciana, só em minha boca se mantinha algum possível lume a se acender na saliva, entre os dentes, uma palavra qualquer que iluminasse a existência.
É que a fala nega a noite e dá sentido a nossa presença no planeta.
Mais tarde, bem mais tarde, descobriria que a noite é muito mais veloz nos trópicos do que nas zonas temperadas. Nos pólos, então, a noite quase não passa, dura meses. Mas a noite custa a passar também nos cárceres. Já imaginou quanto deve demorar a noite, nas selvas colombianas, para as pessoas que as Farc mantêm seqüestradas? Para quem teve roubado seu futuro, a noite se prolonga dia adentro e emenda com a seguinte, é a noite sem aurora.
Que diferença daquela noite boliviana, nos anos 60, quando Guevara punha em risco sua vida por um sonho: o sonho de criar uma sociedade fraterna e igualitária nas Américas. Sonho, que ele sonhou errado, na hora errada, no lugar errado, por acreditar que quem sabe faz a hora, não espera acontecer. Não faz. Esse voluntarismo juvenil só conduz à derrota.
É que o homem perdeu o paraíso pela impaciência, como disse Kafka. Mas podemos dizer que, pela paciência, quem sabe, ainda poderá recuperá-lo. Paciência que signifique determinação, persistir na luta, demore o que demorar, paciência que nos ajude a vencer a noite com todos os seus fantasmas e pesadelos.
Como se vê, há muitas noites na noite -o que nos fascina e assusta, como disse Murilo Mendes, "com seus abismos azuis".

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