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Entrevista:O Estado inteligente
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segunda-feira, abril 30, 2007
Colunas
Opinião
domingo, abril 29, 2007
CELIO BORJA Surto de intolerância
Os titulares do direito de defesa são, pois, as pessoas e as famílias, da mesma maneira que o ofendido pode exigir a cessação e reparação dos abusos sofridos por meio da imprensa escrita. Mas isto não dá ao Estado o poder ou a prerrogativa de censurar o veículo impresso ou o pensamento de quem escreve.
O ofensor é responsabilizado, na forma do devido processo legal.
O que o legislador está, portanto, autorizado a fazer é instituir os meios de responsabilização dos veículos de imagens pelo desrespeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, permitindo que uma e outra possam pleitear ao Judiciário a cessação do abuso e, eventualmente, a reparação material ou imaterial do dano. Esses meios de defesa devem ser eficientes e prontos, e assegurar a obediência aos princípios da boa justiça.
Mas, com fundamento nas disposições referidas, não é lícito submeter ao controle estatal o pensamento, a ciência, a arte e quaisquer manifestações do espírito ou ditar-lhes regras jurídicas ou técnicas de elaboração, produção, expressão e veiculação, uma vez que elas são constitucionalmente livres (art. 220, caput). Mas os seus agentes podem e devem ser responsabilizados pelo abuso dessa franquia.
Com esse criterioso arranjo, o Constituinte de 1988 teve por escopo evitar que o indeclinável dever de proteger a infância e a juventude fosse usado como fundamento ou pretexto do controle político dos meios de comunicação. Lembrar esses princípios da Constituição é, hoje, imperioso, à vista do alarmante surto de intolerância, de prepotência e de opressão que grassa na América do Sul, com a partidarização das concessões de televisão e rádio, e a ocupação, pelo poder político, travestido de empresário de cultura e entretenimento, do espaço público de expressão de idéias, suprimento de informação e produção cultural. Na sociedade aberta que a democracia é, esse espaço é patrimônio comum de todos e não deve ser dominado por partidos, governos ou grupos.
Agentes do Estado podem e devem ser responsabilizados pela repressão à liberdade de expressão
DANUZA LEÃO Viva o futuro
É muito bacana anunciar que todos os alunos vão ter computadores, mas antes vão ter de ensinar o básico |
Aquele libertino e boêmio, que passava as noites na balada, quando se apaixonar -se houver uma mulher neste mundo tão séria e honesta que o mereça- vai virar outra pessoa: um marido conservador.
Adeus saias curtas e decotes mais profundos, aqueles que iam até o rim. No futuro, ele será um pai repressor, um guardião da honra da filha, que terá hora para chegar em casa e só poderá namorar bons rapazes. Já com os filhos, será outra coisa; quem não sabe que rapazes e moças são diferentes? (E sobretudo que as filhas dos outros são diferentes das dele?)
É, tome cuidado, pois as aparências costumam enganar. Se você pensa que milionário é aquele que só usa roupas de grife, sai pelos restaurantes tomando champanhe com a BMW esperando na porta e passa os fins de semana num iate, cercado de gatas, ledo engano: os verdadeiros milionários costumam usar ternos velhos e andar em carros caindo aos pedaços (mas blindados). E para que querem tanto dinheiro, afinal? Boa pergunta.
Os aparentemente mais extrovertidos costumam ser os mais tímidos, e os mais calados e discretos, os mais perigosos -no melhor sentido, naturalmente. E aquela mulher que só se veste de preto e baixa os olhos quando fala com um homem pode ser a mais devassa das devassas.
É preciso, por isso, prestar a maior atenção às pessoas e não acreditar no que elas parecem ser nem no que dizem. Com os políticos, então, é fundamental estar com os olhos e ouvidos muito abertos.
Quanto mais moralistas eles são, mais donos da verdade, mais guardiães da honestidade e da pureza, pior vão fazer, se eleitos. O pior é que tem gente que acredita, e a decepção que têm depois faz com que não acreditem mais em político algum e que pensem em rasgar o título eleitoral para nunca mais votar. Mas assim como não se pode acreditar em tudo que se ouve, também não se deve achar que tudo que dizem é mentira, e ter esperança, sempre.
Eu tenho.
Agora, por exemplo, ouvimos do presidente que a educação do Brasil vai ser das melhores do mundo; e isso não é bom? O fato de que -segundo o jornal "O Globo"- em apenas 10 dos 5.500 municípios do país os alunos atingiram a média dos países desenvolvidos, apesar de lamentável, também nos deixa cheios de orgulho, só de pensar que em breve estaremos competindo, em educação e cultura, com países como França, Inglaterra, Estados Unidos, Canadá.
Só tenho uma pequena dúvida: para que isso aconteça, vai ser preciso um exército de professores bem formados, e não sei se os que temos são suficientes para dar conta de tantas crianças -e as que ainda têm três, quatro, cinco anos, já já vão entrar na escola. E formar esses novos professores, alguém falou (ou pensou) nisso? É muito bacana anunciar que num futuro próximo todos os alunos vão ter computadores, mas antes disso vão ter que consertar o teto das escolas de Recife e ensinar às crianças o básico: ler, escrever, somar e subtrair.
E que ninguém diga que eu só aponto os defeitos de nosso governo. Só esta notícia sobre a educação já vale por quase tudo que eles aprontaram, e só quero dizer mais uma coisinha: na queda-de-braço entre o que quer Lula e a ministra Marina Silva, vou estar sempre do lado da ministra, mesmo sem entender muito do assunto.
Da ministra e dos bagres.
danuza.leao@uol.com.br
Folha de S.Paulo
JANIO DE FREITAS Rios de dinheiro
Em suas falas inaugurais, o presidente Lula exaltava a equiparação dos bingos às atividades mais límpidas
O NOTICIÁRIO , vasto e chocante, sobre uma parte da intimidade financeira entre exploradores de bingos e juizes, advogados e policiais faz lembrar que, em seu primeiro ano, o governo Lula apresentava como uma das metas de curto prazo a legalização desses cassinos, para acabar com todas as possíveis controvérsias a respeito.
A disposição era tal, que já em suas falas inaugurais (nem imaginávamos o que o futuro nos imporia, nesse quesito) Lula exaltava a equiparação dos bingos às atividades mais límpidas, com referências à educação e outros deveres sociais. José Dirceu, por seu lado, deixou uma espécie de aval aos bingos. Ou seria também a Lula? Menos citado, antes que Waldomiro Diniz dissolvesse a meta do governo, foi que a controvérsia sobre a contravenção acabaria, também, se os bingos fossem proibidos de uma vez, como determina a Constituição para os jogos de azar.
Diante do noticiário atual, você já se perguntou o que teria levado Lula e seus próximos a chegarem ao Poder com preferência, tão pressurosa, pela legalização em vez da proibição?
Concordo em que é um tipo de pergunta sem necessidade de resposta. Mas que tem várias possíveis utilidades, lá isso tem. Seja como for, preveni-me com uma pergunta alternativa e, neste caso, com resposta só dispensável aos de certo ramo de transações entre governos e particulares.
O bingo e seus juizes tiveram que disputar espaço, na semana, com outro tema de igual toxidade. Esteve no noticiário contraditório, quase todo dependente do tipo de relações do respectivo jornalista com Lula ou o Planalto, sobre o confronto entre o Meio Ambiente e o projeto de hidrelétricas que mudariam a geografia e tudo o mais na região amazônica do imenso e belo rio Madeira.
O que causa a controvérsia, se é tão clara a lei que exige, para aprovação ou rejeição de obras, o estudo de suas conseqüências sobre a natureza ambiente, o clima e a vida humana? A melhor maneira de não perder tempo na deliberada barafunda do palavrório técnico, mas formar uma noção do que motiva a batalha pela construção urgente, está aqui: é obra de R$ 20 bilhões. Não contados os complementos para distribuição da energia. Nem incluídos os reajustes de sempre, e sempre de dimensões sufocantes (veja o caso do Pan), nas obras públicas. Ou seja, é obra para uns R$ 40 bilhões ou mais.
A conversa de que Lula, com sua pressão sobre a ministra Marina Silva e contra os técnicos do Ministério do Meio Ambiente, "responde à ética da responsabilidade", para "viabilizar a oferta de energia" e "assegurar o crescimento" tem precedente: é o mesmo argumento, atacado pelo Brasil e por quase todo o mundo, usado pelos Estados Unidos para não assinar o Protocolo de Kioto e continuar acelerando o aquecimento e a poluição do planeta, por entenderem que alterações na oferta e uso de energia prejudicariam o vigor econômico do país.
Não é de agora que Lula assume a condição de maior opositor do meio ambiente entre nós. Já nos primórdios do primeiro mandato, desfez-se de tudo o que pregara contra a precipitação de alimentos transgênicos. Deu cobertura ao plantio ilegal e à comercialização idem de soja transgênica. A pretexto de que o plantio foi extenso e puni-lo, porque ilegal, causaria prejuízos altos aos plantadores. Entre os quais, alguns dos "mais ricos" (da soja e de transgenias financeiras) que permutam encantamentos mútuos com Lula. Pois é, há também presidentes transgênicos.
O meio ambiente para Lula parece resumido à jabuticabeira que Marisa da Silva, diz ele, plantou em vaso, isolada, no seu apartamento do ABC. E que, diz ele, produz safras de frutos excelentes. Um dia a botânica estudará esse fenômeno que integra as verdades servidas por Lula aos brasileiros. Mas talvez não tenha o que estudar na Amazônia brasileiro-boliviana do grande Madeira. Não faz mal. Se depender de Lula e sua velha preferência, os botânicos distrairão o tempo nos bingos, também caudalosos. Em dinheiro.
Miriam Leitão O ponto central
A maior parte da verba extra que vai ser transferida no Plano de Desenvolvimento da Educação este ano será dedicada aos mil municípios que têm os piores resultados e, portanto, mais precisam do dinheiro. Para eles, vai R$ 1 bilhão. Pode parecer um valor alto, mas isso representa uma quantia equivalente à que foi gasta, em 2006, com publicidade do governo. Não é isso que permitirá o resgate dos inúmeros problemas acumulados em tantos erros passados.
Neste começo de ano, o Brasil viu que havia crianças sem aula até no Rio de Janeiro, escolas desabando em Pernambuco, alunos andando 14 quilômetros diariamente em Minas para freqüentar o colégio.
Anualmente, ainda 50 mil jovens brasileiros chegam aos 15 anos analfabetos.
Conta feita, ao todo, existem 2,4 milhões de jovens com menos de 30 anos analfabetos.
Não são resultados dos erros históricos e remotos do Brasil; eles atingiram a idade escolar na democracia.
Quem chega aos 30 anos de idade em 2007, tinha 11 anos na promulgação da “Constituição Cidadã”.
Se chegam aos 30 anos analfabetos, são vítimas de erro recente, erro nosso. De todos os últimos governos que tivemos no país.
O Brasil perde em indicadores educacionais na região na comparação com vários países — alguns deles bem mais pobres que nós — em dados básicos, como escolaridade da população.
Essa é a triste realidade.
Portanto, antes de pensar em superar os países desenvolvidos, que o ministro Fernando Haddad nos diga quando vamos superar os vizinhos bem menores que nós.
O avanço iniciado na década de 90 foi bem localizado: aumentou a presença na escola de crianças de 7 a 14 anos, e isso foi uma vitória. Mas a evasão dos jovens de 15 a 17, que estava em queda, voltou a subir nos últimos dois anos. O trabalho infantil, depois de 14 anos caindo, também teve uma pequena, mas inaceitável, alta.
O pior de todos os problemas é a qualidade: alunos se esforçam e passam anos indo à escola e não aprendem sequer a ler e a escrever o básico. A culpa não é dos alunos. O desempenho deles denuncia a incompetência do sistema educacional. Os estudantes fazem o investimento pessoal, vão ao colégio, persistem anos a fio, mas a escola não consegue transferir o conhecimento.
Nesse campo, vários pesquisadores estão tentando entender o que acontece, mas existem duas certezas já conhecidas há muitos anos, há muitas décadas, desde sempre: aprende mais aluno que fica mais tempo na escola e aprendese menos em escola onde falta professor. Quanto a esse ponto, o PAC da educação não é enfático, apenas fala em incentivar projetos de expansão da carga horária. Hoje, a carga mínima é de quatro horas de aula. E é justamente o tempo em sala que mais impacta no desempenho. O que o MEC poderia fazer, pelo menos, era estipular um prazo para que se aumentasse a carga horária.
Quanto à falta de professor, outro problema grave, que deixa alunos que querem estudar sem aprender, o governo mal toca no assunto. Dificilmente os professores são punidos por suas ausências. Aliás, como também não há projetos para incentivá-los. Um professor dedicado, numa escola pública, ganha quase sempre o mesmo que um relapso, que falte muito. E isso faz toda a diferença.
O Plano de Desenvolvimento da Educação representa alguns passos que vão na direção certa. O Fundeb significará maiores salários para os professores e mais recursos federais na educação básica; haverá avaliações com o “provinha Brasil”, o país perseguirá metas, e as universidades terão mais autonomia. Tudo isso é bom. Vai na linha do que já foi feito no governo passado, com o Fundef, os sistemas de avaliação, o provão.
O fato de serem aperfeiçoamentos de medidas que deram certo mostra o caminho: a persistência em mecanismos de avaliação e controle, a busca da universalização e a introdução de inovações, como as metas de desempenho.
Em educação, o Brasil está muito atrasado. Há erros de vários graus. Nada será resolvido por um plano único, num passe de mágica. O século não será salvo por um exagero de linguagem do presidente da República; terá que ser conquistado ano a ano. O trabalho será longo. Os planos devem ser ousados, mas a atitude precisa ser sóbria: pelo muito que falta, pelo tanto que erramos, pelo longo caminho à frente até chegar a um ponto minimamente aceitável.
O assunto não se presta a palanques, principalmente os fora de época.
A linguagem de palanque não oculta os fatos. Anunciar um tímido projeto de informatização da escola não esconde a incapacidade do governo de usar o dinheiro do Fust, que anda mofando. Criado para financiar a informatização e a interligação das escolas públicas, o fundo tem hoje estéreis R$ 5 bilhões.
Numa entrevista concedida ao GLOBO no domingo passado, Jean Hébrard, inspetorgeral do ensino público da França, profundo conhecedor do Brasil, apontou vários defeitos do sistema educacional brasileiro. Um deles: a educação básica é obrigação dos estados e municípios — e não uma questão federal —, e isso aumenta a desigualdade.
DANIEL PIZA
DANIEL PIZA, daniel.piza@grupoestado.com.br Site:
Quando se fala em livros que podem mudar a vida de uma pessoa, muitas vezes se cria uma expectativa errada, como se fosse uma mudança da noite para o dia, redentora, prática ou o que seja. Não é por aí. Mas todo mundo que já leu bastante sabe que, entre os livros preferidos, para além dos consagrados, há aqueles que são especialmente queridos, íntimos, feito o filho favorito que a mãe finge tratar igual aos demais; são livros que foram lidos no momento certo, para as dúvidas certas, e ficaram na memória como aquela canção de namoro ou aquela comida da infância. Uma boa antologia de poemas de Emily Dickinson (1830-86), independentemente de estar no “cânone” da crítica, certamente é desses livros que podem, se não mudar, marcar uma vida. Ela marcou a minha; em meio a uma formação tão determinada por autores assertivos, quase peremptórios, foi tanto um contraponto quanto um novo impulso.
Acaba de sair no Brasil uma antologia dessas, Alguns Poemas, com tradução de José Lira (editora Iluminuras). Dickinson está em alta no mundo todo. Como no Brasil, tem ganhado novas traduções ano a ano. Nos EUA é cada vez mais estudada e celebrada. A modelo e cantora Carla Bruni, em seu CD mais recente, No Promises, interpreta poemas musicados de vários autores, como Yeats, Auden e Dorothy Parker, e é de Emily Dickinson o maior número (são três: I Felt My Life with Both My Hands, If You Were Coming in the Fall e I Went to Heaven). Mas nem sempre foi assim. Como Kafka ou Van Gogh, ela só foi descoberta depois de morta, graças aos esforços da irmã, e ainda assim demorou um tempo para que se assimilasse sua voz diferente, cheia de pausas e assimetrias, capaz de negar nossas ilusões mais baratas e ao mesmo tempo nos injetar uma vontade de viver. Deve ser por isso que soa tão atual, tão na moda.
José Lira obtém muitos achados, mas não vou comentar as traduções; como a edição é bilíngüe, o ideal é tentar ler no original e usá-las como apoio. Também não vou me estender sobre o CD da bela e corajosa Bruni, que tentou enfiar poemas tão distintos na mesma moldura folk. Dickinson é intransponível. E é para transportar na bolsa, para ler antes de dormir, para deixar a gente pensando durante dias com apenas meia dúzia de linhas. “Parting is all we know of Heaven/ And all we need of Hell” é seu dístico mais famoso. Lira traduziu “parting” por “partir”, embora seja “despedir-se”, separar-se do mundo - como, não à toa, fez a própria Emily, que vivia sozinha em sua casa na cidadezinha de Amherst, perto de Boston, reclusa em seus últimos 25 anos e com apenas dez poemas publicados. A irmã, Lavinia, achou os cadernos numa gaveta do quarto, depois de sua morte. Ela tinha escrito quase 1.800 poemas, com tudo que sabia do paraíso e tudo que precisava do inferno.
Dona de uma sensibilidade de Jane Austen e um intelecto de Wittgenstein, ela não se encaixa em nenhuma de nossas etiquetas prontas, do tipo “otimista” ou “pessimista”. Quando lemos “That it will never come again/ Is what makes life so sweet” (“Que nunca mais virá de novo/ É o que faz doce a vida”, na versão de Lira, que perdeu a ênfase do “tão doce”), somos obrigados a pensar fora dessas categorias. Ou “To be alive - is Power/ Existence - in itself -/ Without a further function -/ Omnipotence - Enough -” (“Estar viva - é Poder -/ A Existência - em si própria -/ Já é suficiente Onipotência -/ Sem outro requisito”). Ao mesmo tempo sentimos uma leveza, o alívio de pensar “Caramba, estar vivo, existir, é tudo”, e lamentamos que seja preciso sempre atrelar uma função, uma necessidade de mensagens de fé e esperança... Nunca ninguém falou tanto em morte, “finitude”, sem medo nem credulidade.
Mas não são apenas as idéias, os aforismos. É a capacidade de usar palavras como “ablative” ou “obloquy” em meio a frases correntes. É a repetição do recurso da disjunção, esses tracinhos que não devem ser lidos como travessões, apenas como pausas, como silêncios que falam. É o detalhe da seda e do tule irrompendo na descrição do famoso poema que se inicia com “Because I could not stop for death”. É a pintura - no poema I Died for Beauty - da beleza e da verdade unidas, mas sob túmulos contíguos, cobertos pelo mesmo musgo, como Keats ouvindo da urna grega. É a freqüência da palavra “dew”, orvalho, melhor símbolo de seu mundo - uma lágrima decantada pronta sempre à renovação, no intervalo entre conhecimento e necessidade. É, enfim, todo esse sofisticado despojamento que fica no leitor depois que o livro fica na estante.
RODAPÉ (1)
Dickinson está incluída no livro O Mundo como uma Frase, de James Geary (Objetiva), que se diz “uma breve história do aforismo”. Mas não vale a pena ler, porque não vai além dos miniperfis de frasistas manjados (não tanto o caso dela), salvo pela definição dos atributos de um aforismo: breve, definitivo, pessoal, surpreendente e filosófico.
RODAPÉ (2)
Dois livros que já comentei aqui e incluí em listas de melhores do ano, a biografia Goya, de Robert Hughes, e as reportagens sobre o 11/9 de O Vulto das Torres, de Lawrence Wright, estão traduzidos no Brasil. Quem se interessa pelos assuntos vai se deliciar com informações e interpretações de primeira.
CADERNOS DO CINEMA
Vale a pena ver o documentário Cartola, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda. Há uma diferença de ritmos na narrativa - muito saturada e acelerada na primeira metade -, faltam legendas e não dá para entender direito a razão de algumas imagens repetidas, como a das gambiarras (sinal do descaso público? a dificuldade de comunicação atual? contraponto à alegria verde-rosa das bandeirinhas da Mangueira?). Mas o saldo é bom porque as imagens escolhidas para cada época podem ser surpreendentes e o esquema depoimento com ilustração é driblado; mais importante, sentimos o sofrimento de Cartola, a dificuldade de ser reconhecido e pago como artista, seu extraordinário dom poético e melódico. E pelo menos três de suas maiores canções - O Mundo É um Moinho, Acontece e As Rosas não Falam - podemos escutar inteiras. Na primeira, em interpretação dele para seu pai, que emociona a qualquer um, note que diz [O MUNDO]“o mundo é um moinho/ Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho” e não, como se canta habitualmente, “tão mesquinhos” - o mundo é que mesquinho, não os sonhos. Seguramente não os de Cartola.[/O MUNDO]
DE LA MUSIQUE
Descafeinada é tudo que Amy Winehouse não é. A cantora e compositora abre seu CD, Back to Black, com uma pegada e um vozeirão que não perdem o pique até a última faixa. Sem o jeito postiço de Joss Stone, ela faz pensar em Aretha Franklin, Diana Washington, Etta James, em divas do soul - e a elas acrescenta uma ousadia bem contemporânea, com versos como “You know I’m no good”, título da ótima segunda faixa. Depois algumas canções soam repetitivas, com exceção da balada Love Is a Losing Game, mas, no conjunto, ela é excelente antídoto ao bom-mocismo.
UMA LÁGRIMA
David Halberstam, que morreu na segunda em acidente de carro, era um jornalista-ensaísta muito interessante; infelizmente, não foi traduzido no Brasil. Ganhou o Pulitzer e publicou muitos livros sobre a Era Kennedy e a Guerra do Vietnã. Escrevia sobre literatura, política, esportes, comportamento. Gosto de The Fifties, um cartapácio sobre a década de 50 nos EUA, única em sua vitalidade cultural e contradições políticas.
POR QUE NÃO ME UFANO (1)
“Existe finalmente um centro na França. Um centro amplo, um centro forte, um centro independente, capaz de falar e agir além das fronteiras de outrora. Esses milhões de franceses (os 7 milhões que votaram nele) compreenderam que a velha guerra de dois campos não respondia mais ao mal da França. Eu digo que o mal da França é mais grave do que a descrença nos dois partidos que ainda nesta noite chegaram ao topo.” Assim disse François Bayrou quando se divulgou o resultado do primeiro turno das eleições francesas. Os dois vencedores, Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy, também cederam ao centro, caso contrário não venceriam. Mas é o caso de perguntar: por que não existe finalmente um centro no Brasil? Será porque aqui tudo que chega ao centro tende a morrer?
POR QUE NÃO ME UFANO (2)
Reeleição existe em muitos países. O que não existe em muitos desses países é um sistema com dezenas de partidos sem fidelidade nem representatividade, para não falar da impunidade causada, entre outros motivos, pela falta de critério técnico nos tribunais de contas. Mas que Lula, depois de reeleito, se diga contra - como havia sido em 1997 - é hilário.
Só não é tão hilário quanto Roberto Mangabeira Unger, mais Mangabeira do que Unger, aceitando cargo no governo que disse ser o mais corrupto da história, levando ao cume a moda do “esqueçam o que escrevi” (no caso de Lula, “esqueçam o que discursei”). Intelectual brasileiro quer mesmo é aderir ao poder.
Aforismos sem juízo
A curiosidade antecede a vaidade.
'Uma boa antologia de poemas de Dickinson pode, se
não mudar, ao menos marcar uma vida'
'Mangabeira Unger no governo é hilário. Intelectual brasileiro quer mesmo é aderir ao poder'
Escorregadas de Mantega
Suely Caldas*
Felizmente prevaleceu o bom senso e o ministro da Fazenda, Guido Mantega, recuou da idéia. Ele não deveria tê-la anunciado antes de estudar seus efeitos. Mas o fez e na linha-padrão Mantega: entusiasma-se com uma idéia (sobretudo se ela agrada aos políticos), apressa-se em divulgá-la como algo inusitado e inovador de um time imbatível que ele levou para a Fazenda, mas frustra-se quando os experientes técnicos de terceiro escalão - estes sim tarimbados no assunto - descobrem ser inviável.
Na última segunda-feira, Mantega anunciou que o governo iria rever os contratos das dívidas dos Estados e municípios com a União para permitir a elevação do limite de endividamento a um valor equivalente não mais a um, mas a dois anos da receita líquida de cada unidade da federação. No dia seguinte já não era nada disso; o limite ficaria mesmo em um ano da receita, porque a idéia inovadora elevaria as dívidas dos Estados em nada menos que R$ 140 bilhões. “É uma continha salgada”, disse Mantega.
Foi, no mínimo, imprudência, inexperiência ou desconhecimento da história recente. Afinal, até a renegociação das dívidas dos Estados, iniciada em 1997 e completada em 2000, governadores e prefeitos de grandes cidades abusaram do endividamento sem limites para financiar seus sempre exagerados gastos. Ora usavam os bancos estaduais para emitir títulos, que vendiam no mercado (leia-se recebiam dinheiro vivo e deixavam a dívida para o próximo governador, que não pagava e deixava para o próximo, e este para o próximo...), ora sacavam dos cofres das empresas distribuidoras de energia elétrica à título de empréstimos, que não pagavam, ora comprometiam suas arrecadações de impostos oferecendo-as em garantia em “créditos” contraídos com bancos privados a taxas de juros elevadíssimas (chamadas Adiantamentos de Receita Orçamentária - AROs). Quando todas essas torneiras foram fechadas inventaram os precatórios, que vendiam com enorme deságio para fundos de pensão de estatais. Tudo valia, o importante era fabricar dinheiro para gastar. A farra acabou quando o governo FHC decidiu que a União assumiria todas as dívidas, mas fez constar em contrato que os Estados só poderiam contratar novos créditos quando o valor total da dívida fosse inferior à receita líquida anual.
O ministro Mantega já era um veterano economista do PT quando tudo isso aconteceu. Portanto, tinha obrigação de conhecer essa história. Natural que dele se espere cuidado e não açodamento ao falar de um assunto explosivo que já causou prejuízos graves para a população, a quem sempre cabe pagar a conta final das aventuras dos políticos. Mas, felizmente, Mantega foi despertado pelo terceiro escalão e decidiu voltar atrás. Se ele quer mesmo encontrar uma alternativa, o próximo passo é pedir à sua assessoria que faça um levantamento sobre os ajustes ou desajustes feitos por cada Estado, depois da negociação encerrada em 2000.
O último número da revista Conjuntura Econômica, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), traz um breve resumo da trajetória da relação entre endividamento e receita líquida dos Estados, entre 2000 e 2006. Enquanto Espírito Santo (de 0,98 para 0,33), Piauí (de 1,73 para 0,75), Paraíba (de 1,53 para 0,76) e Mato Grosso (de 2,5 para 1) reduziram substancialmente suas dívidas em relação à receita, Alagoas (de 2,23 para 2,15) e Rio Grande do Sul (de 2,66 para 2,54) administraram mal e continuam apresentando situação muito preocupante. Portanto, há Estados que aprenderam e hoje se enquadram nas exigências para contrair novos créditos, mas há os renitentes, que continuam gastando mais do que podem e estão impedidos de obter empréstimos para financiar investimentos.
Importa agora que o ministro e sua equipe estudem a questão a fundo e avaliem seus efeitos antes de fazer qualquer novo anúncio público e ter de recuar depois, produzindo desgaste político para seu chefe Lula junto a governadores ávidos por empréstimos de organismos internacionais de crédito, como o Banco Mundial.
Aliás, não é a primeira vez que Mantega escorrega ao buscar uma solução para o problema. Há duas semanas ele anunciou que o governo federal iria autorizar governadores a refinanciar suas dívidas com a União, em condições mais favoráveis, junto a bancos privados. A idéia inovadora acabou esquecida diante do absoluto desinteresse dos bancos privados.
*Suely Caldas é jornalista. E-mail: sucaldas@terra.com.br
Estados devem ser parte do alívio fiscal?
Raul Velloso*
Com o PAC e embalado pelo atual cenário externo, o governo anunciou o aumento dos seus investimentos e depois se reuniu com os governadores. Oferecendo um menu de opções, estes pediram apoio para participar do alívio fiscal anunciado. Faz sentido? O assunto será discutido em dois artigos neste espaço. O outro deverá sair dia 5 de maio.
O fato é que, sob a apertada camisa-de-força que se colocou nos últimos anos sobre os governos estaduais e municipais, com prós e contras, foi possível transformá-los de contumazes geradores de resultados fiscais negativos em entes, em geral, superavitários. De 1995 a 1998, mesmo sem incluir juros, só houve déficits, em todos os anos. De 1999 para cá, os déficits sem juros viraram superávits, e superávits expressivos, chegando hoje a cerca de 1/4 do superávit primário global. Sem a sua inclusão no esforço de ajuste fiscal, a dívida pública dificilmente estaria hoje sob controle. Isso é sustentável? Ou terá de vir algum alívio? É arriscado haver perda de controle?
A citada camisa-de-força se dá, na essência, via três elementos: regras da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); vinculações de receitas; e contratos de renegociação de dívidas com a União.
Pela LRF, os Estados brasileiros devem gastar no máximo 60% de suas Receitas Correntes líquidas (RCL) com pessoal (sendo 49% para o Executivo e 11% para os demais poderes). Com as exceções que sempre ocorrem, os Estados vêm conseguindo obedecer a esses limites, pondo fim a uma antiga fonte de pressão sobre déficits no setor público brasileiro. O difícil é convencê-los a aprofundar mais esse ajuste. Por que baixar mais, se a LRF permite gasto naquele nível? Há, assim, o risco de os limites da LRF virarem piso.
A maioria das constituições estaduais exige que se gaste pelo menos 25% de suas receitas líquidas em educação e 12% em saúde. Isso implica que qualquer economia de gasto na despesa de pessoal relativa a esses setores só é aproveitada dentro desses mesmos segmentos. Ou seja, acaba se traduzindo em aumento do item “outros custeios e capital”, relativo a esses setores. As vinculações impedem a transferência de recursos poupados com pessoal para outras finalidades de eventual interesse da sociedade local, além de deixarem a dúvida se faz realmente sentido gastar tais quantias nos setores de educação e saúde e não em outros segmentos que possam deter, eventualmente, prioridade superior.
Em 1998/1999, a União assinou, com todos os Estados, contratos de renegociação das dívidas ainda fora desse tipo de esquema, com taxas de juros fixas, e em troca do comprometimento de parcela de cerca de 13% das suas receitas para servir todas as dívidas renegociadas até então consigo, deixando de fora basicamente as dívidas de origem externa (de maior peso nos Estados pobres). As prestações são pagas automaticamente mediante desconto nas transferências constitucionais enviadas aos entes federados, o que garante que algum superávit sem juros vai se realizar. Há outros compromissos, mas aqui não há espaço para detalhá-los.
As metas de superávits primários (sem juros) se deduzem implicitamente dos compromissos de pagamento do serviço da dívida, da trajetória de endividamento (considerando, inclusive, as autorizações para novos endividamentos - que acabam se concentrando nos Estados mais ricos) e das perspectivas de alienação de ativos e recebíveis de propriedade do Estado (igualmente relevantes para os mais ricos).
Imaginando nenhuma contratação de empréstimo novo e a inexistência de ativos e recebíveis para alienar, o superávit primário corresponde ao pagamento total do serviço da dívida. Em alguns casos, esse valor pode alcançar parcela superior a 20% de Receita Líquida Real (ou algo ao redor de 17% de RCL), em vista de pesados pagamentos da dívida extralimite. Nessas condições, mesmo tendo encontrado um jeito de se obrigar os Estados a gerar superávits elevados, é possível antever que, depois de computar as vinculações de educação e saúde e considerar os pagamentos de pessoal fora desses setores e do serviço total da dívida, sobrará pouco espaço para gastos em programas propriamente ditos, a não ser nas áreas de educação e saúde.
Assim, talvez mais que a União, os Estados (principalmente os mais pobres) tenham ficado com margem bem restrita para realizar investimentos (como os investimentos em transportes) e outros gastos importantes fora educação e saúde (como segurança).
*Raul Velloso é consultor econômico
O multilateralismo está superado?
Alberto Tamer*
As dificuldades de se chegar a acordos comerciais multilaterais começam a pôr em dúvida a sua eficiência num mundo em que a economia se movimenta com maior dinamismo e enfrenta novos desafios, bem diferentes dos que existiam quando da criação da Organização Mundial do Comércio (OMC). Hoje, o comércio mundial é de mais de US$ 12 trilhões sem contar os US$ 2 trilhões de serviços.
Tudo leva a crer que a fase desses acordos já passou. Nada foi conseguido nos últimos dez anos e as negociações em torno da Rodada Doha se arrastam mais levada pela sua gravidade própria do que por avanços. Continuamos parados onde estávamos e, pela última reunião na Índia, tudo indica que continuaremos no mesmo lugar. Essa imobilidade que tanto prejudica os países agroexportadores e beneficia os Estados Unidos e a Europa vai continuar.
Em reunião realizada esta semana nos EUA e noticiada pelo Financial Times, o Atlantic Council of the USA, que conta com dois ex-subsecretários do Comércio, concluiu que os acordos multilaterais estão superados por falta de agilidade e de difícil consenso, senão impossível, entre mais de 100 países associados. Nem o G-20 e agora o G-4 ( Brasil, EUA, Europa, Índia) conseguiram alguma coisa.
OS EUA NÃO QUEREM NADA...
Ainda segundo o Financial Times, os presentes no encontro da Índia propuseram que EUA e Europa assumissem o compromisso de propor um novo modelo comercial - para esta coluna um conto da carochinha, pois eles não têm nenhum interesse nisso. Estão bem como estão. Os EUA aumentando agora suas exportações e fazendo acordos bilaterais, alguns bilionários, como o da Coréia do Sul.
... E A EUROPA TAMBÉM
A Europa, por seu lado, segue o mesmo caminho e anunciou nesta semana que vai negociar com os países do Leste Europeu, hoje superando os EUA em exportações para a comunidade. Ainda em início de frágil recuperação, após quatro anos de estagnação, está fechada no seu próprio bloco, negociando entre si e com as antigas colônias, indiferente às propostas e aos protestos de países como Brasil, Índia ou mesmo a Austrália, entre outros. A Europa quer se entender, isto sim, com os EUA, ambos que subsidiam e protegem ferreamente seus agricultores, eleitores de peso numa democracia. “Você baixa que eu baixo”, diz um ao outro. E ninguém reduz subsídio algum.
UMA NOVA POLÍTICA COMERCIAL
Esta é a realidade e os países desenvolvidos estão se adaptando a ela. Os acordos bilaterais liderados pelos EUA proliferam, depois da Coréia pretendem partir para outros caso o Executivo ganhe a autorização do Congresso. E mesmo que não ganhe, tudo poderá ser reiniciado após a eleição presidencial. Enquanto isso, ele vai tentando ter a aprovação do Congresso para os acordos feitos com vários países, inclusive na América Latina.
O ISOLAMENTO ABSURDO
Aqui, o Brasil continua isolado, não aceitando, parece, qualquer insinuação de acordos bilaterais, a não ser as aproximações inúteis com países africanos que não compram nada e não consomem nada. É uma estultice teimosa que agride o bom senso. Estamos aí purgando com a Argentina os acordos no contexto do Mercosul, um enfermo a caminho da UTI.
Enquanto isso, a China, ao mesmo tempo em que avança sobre o nosso mercado - e não são nem os brinquedos nem as bugigangas do passado -, está nos roubando o mercado argentino. O embaixador do Brasil na China, Castro Neves, fez uma análise perfeita da situação, em texto lido em seminário realizado em São Paulo. As retaliações do Brasil, se vierem, não resolvem tudo. Elas apenas criam um ambiente hostil. O importante mesmo é pôr em prática uma política comercial coerente que permita dar aos produtos brasileiros maior capacidade de competição no exterior. As empresas nacionais que exportam, principalmente para a China, mas também para outros países como EUA e Europa, estão com as mãos amarradas, impotentes, passaram a produzir na China o que produziam no Brasil. É, em alguns casos, uma questão de sobrevivência. Ou estão indo para a China ou estão importando de lá. Muitas passaram de produtoras para simples empresas de trading, importam para poder produzir a custo menor e exportar.
Sei que o leitor deve estar perguntando como posso afirmar que não temos uma política comercial se as exportações estão aumentando? Aumentam sim, mas por causa principalmente dos produtos primários, não industrializados, e a conta-gotas enquanto países emergentes como China e Índia, caminham celeremente a passos largos. Estamos no último lugar entre esses países e, repito, representamos apenas 1,1% do comércio mundial. É nada, absolutamente nada. Uma insignificância.
O triste é que temos potencial para crescer muito mais se tivermos uma política comercial preocupada com os problemas de infra-estrutura, juros e impostos altos. Se reduzirmos, enfim, o enorme custo Brasil.
Quanto à pergunta sobre como sei que não há política comercial, respondo com outra: “Por favor, diga-me quem coordena a política comercial brasileira? O Itamaraty? O Ministério do Desenvolvimento? A Fazenda? Todos e ninguém. Estão aí disputando espaço entre si.
*E-mail: at@attglobal.net
O êxito da agricultura brasileira
Mailson da Nóbrega *
Vários fatores explicam o êxito da agricultura nos últimos anos. A meu ver, seis deles se destacam: (1) incentivos de mercado; (2) capacidade empresarial; (3) tecnologia; (4) estabilidade macroeconômica; (5) redução da intervenção estatal; e (6) mudanças institucionais que eliminaram o subsídio creditício generalizado.
Comecemos pelo último ponto. Durante décadas, prevaleceu no Brasil a idéia, equivocada e sem paralelo no mundo, de que o crédito oficial, a juro de subsídio, deveria ser o principal incentivo à agricultura. O Banco do Brasil chegou a responder por 90% da oferta desse benefício, que se alimentava de mecanismo institucionalmente atrasado e financeiramente insustentável, isto é, a “conta de movimento”. No início dos anos 1980, como seria de esperar, o peso do subsídio se tornou insuportável.
O crédito subsidiado tinha muitos outros inconvenientes. Não incentivava a busca de aumentos de produtividade, pois o subsídio compensava as ineficiências. Como instrumento de política agrícola, o crédito funcionava apenas para quem tinha acesso a um banco. Milhares de pequenos agricultores ficavam de fora. O estímulo à fraude era imenso, o que gerou inúmeros escândalos.
Em 1984, a proposta de eliminação da “conta de movimento” foi condenada por uma coalizão formada por líderes da agricultura, intelectuais, funcionários do Banco do Brasil e sindicalistas. Falava-se em conspiração para entregar o BB aos bancos privados. Dizia-se que a agricultura sofreria um colapso, a fome rondaria os lares e outras previsões catastróficas. Na época, a safra de grãos girava em torno de 52 milhões de toneladas.
A “conta” acabou e nada disso aconteceu. Como mostra excelente artigo de Marcos Jank e André Pessôa (Estado, 16/4/2007), a agricultura está mais forte do que nunca. “Em 2007, o Brasil vai colher a maior safra de grãos de sua história - 134 milhões de toneladas -, graças ao clima favorável, aos fortes ganhos de produtividade e à melhoria dos preços internacionais”. Mais: “Os produtores brasileiros seguem dando mostras inequívocas de sua competência técnica e capacidade de resistir às constantes adversidades, como a taxa de câmbio valorizada, a infra-estrutura e o aumento do custo dos derivados de petróleo”.
O fim do crédito subsidiado fez despertar o empreendedorismo dos produtores, que estava adormecido pelo efeito dos subsídios. Eles agora reagem aos incentivos de mercado. Conquistaram o cerrado e melhoraram a eficiência em outras áreas, ajudados pelo uso de sementes de melhor qualidade, pelo plantio direto e por outros avanços. A Embrapa contribuiu decisivamente e a ela cabe grande parte do crédito pelo êxito.
Duas outras pragas desapareceram: a inflação e as intervenções freqüentes do governo nos mercados agrícolas. A inflação era particularmente perversa para os produtores e gerava volatilidades inibidoras do investimento. Intervenções como o controle de preços e as restrições aleatórias às exportações geravam perdas e incertezas.
Extinta a muleta do crédito subsidiado, surgiram espontaneamente novas fontes de financiamento, como os fornecedores de insumos e os processadores de produtos. A estabilidade macroeconômica e a sofisticação nos mercados financeiros viabilizaram novas modalidades de crédito e o acesso aos mercados futuros, que reduzem riscos.
A agricultura brasileira é um belo exemplo de como adequadas mudanças institucionais, associadas ao empreendedorismo, à estabilidade, à previsibilidade e à tecnologia podem promover o desenvolvimento. Não foi preciso uma “política agrícola” (na forma como é conhecida no Brasil) nem favores oficiais. Praticamente não há subsídio, como reconheceu recentemente a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
A agricultura precisa de medidas para melhorar a eficiência fora da porteira, como a infra-estrutura, a defesa de nossos interesses comerciais no exterior, ações sanitárias competentes, um sistema tributário decente e uma legislação trabalhista moderna. E, claro, a aplicação do rigor da lei aos invasores de propriedades rurais. Dentro da porteira, nossos produtores andam bem, com suas próprias pernas.
Movimentos parecidos ocorrem em outros segmentos, que também precisam elevar sua competitividade, mas não ficam por aí reclamando de juros e do câmbio.
Névoa moral sobre o Judiciário
Gaudêncio Torquato*
Os desembargadores e juízes acusados de vender sentenças para beneficiar bingueiros, caso sejam condenados, deverão retirar de suas mesas a estátua de Themis, a deusa da Justiça, cujos olhos cobertos por uma faixa simbolizam a imparcialidade no julgamento de ricos e pobres, poderosos e humildes, grandes e pequenos. Os ilícitos cometidos por quem exerce a sagrada missão de aplicar as leis constituem uma violência inominável contra a sociedade, pois induzem à desconfiança na capacidade do Estado em fazer justiça e engrossam a espiral de criminalidade que sobe vertiginosamente ao topo da pirâmide social. Se representantes do mais respeitado entre os Poderes agem como criminosos, esboroa-se a fé na instituição encarregada de assegurar justiça. O mal que uns poucos são capazes de produzir afeta o corpo do qual fazem parte. As pessoas passam a se interrogar: “Se eles podem praticar tramóias, por que devemos cumprir a lei?” A Operação Hurricane, da Polícia Federal, na seqüência de ações para desmontar as quadrilhas incrustadas nas estruturas da República, expõe mais uma faceta da crise do Judiciário, poder que, nas últimas duas décadas, tem perdido forças, seja por conta de restrições orçamentárias e legais, seja em decorrência da explosão de demandas ajuizadas a partir da Constituição de 88 ou em função de uma reforma (Emenda 45/2004) insuficiente para aperfeiçoar o combalido aparelhamento dos tribunais.
A crise deste Poder nasce na fonte patrimonialista em que se batizou o Estado brasileiro. Nessas terras tupiniquins, “onde se plantando, tudo dá”, a semente dos interesses privados foi plantada na roça da res pública, desde a alvorada civilizatória, quando se praticaram os primeiros atos da ladroagem que fincou pé no chão da administração pública. Generoso, d. João III doou, entre 1534 e 1536, 15 capitanias hereditárias aos amigos da Corte. As seqüelas geradas por esse donativo persistem até hoje, podendo-se, a partir daí, explicar a razão pela qual no Brasil o detentor do poder do Estado - políticos e juízes, por exemplo - não tem escrúpulos para enfiar no bolso privilégios, benefícios e direitos inerentes aos cargos que exercem. Quando um cidadão usa o poder que detém sobre outros em seu próprio favor, pactua com a corrupção. E, se considerarmos que o poder político tende a multiplicar sementes corrosivas, principalmente em culturas cartoriais, criam-se condições para o alastramento da “cleptocracia”, ou seja, da roubalheira do Estado. A propósito, o País ganhou três posições no último ranking de corrupção da Transparência Internacional, ocupando, agora, a 62ª posição, com a nota de 3,7 pontos.
Portando os vícios da origem do Estado, a crise do Judiciário adquire contornos definidos quando junta os adjetivos que marcam sua ação: lento, formalista e inacessível. Sua estrutura tem sido incapaz de administrar a explosão dos novos e complexos conflitos de uma sociedade em mutação e propiciar tutela jurisdicional tempestiva aos litígios clássicos. A excessiva demora do processo traz insegurança e o acúmulo de demandas gera colapso no sistema. Num período de dez anos, de 1988 a 1998, o número de feitos aumentou 25 vezes. Em 1990, recebia o Judiciário, na primeira instância, um processo para 40 habitantes. Em 2000, um para 20 habitantes. O cipoal legislativo - 188 mil leis, das quais menos de um terço em vigor - atrapalha o ordenamento jurídico, provocando interpretações contraditórias, controvérsias e aumento progressivo dos recursos. Apesar de termos um modelo federalista, copiado do norte-americano, a esfera federal é quem legisla nos campos do direito material e processual, gerando excesso de centralização. Os tribunais superiores, por seu lado, mais atendem às demandas dos Poderes Executivo e Legislativo do que às lides oriundas do povo.
Os instrumentos criados para assegurar celeridade à Justiça - juizados especiais de pequenas causas cíveis e criminais, rito sumaríssimo na Justiça do Trabalho, súmula vinculante, súmula impeditiva de recursos, tutela antecipada - são uma gota d’água no oceano dos processos. A transparência deixa a desejar, reforçando o conceito de que o Judiciário possui “caixas-pretas”, que escondem gastos com estruturas, a liturgia dos julgamentos e os modos de pensar e agir dos juízes. Para desespero daqueles que conseguem chegar vitoriosos ao cume da montanha, os entes públicos freqüentemente se negam a cumprir decisões judiciais, passando a recorrer sistematicamente, mesmo que a jurisprudência sobre a questão em tela seja consensual nos tribunais. O próprio Estado é quem mais entope as veias do Judiciário. O “circo dos horrores” se completa com a dança para ingresso na magistratura. Com todo o respeito que o Poder merece, carrega-se a impressão de que os quadros precisam atravessar um corredor moral e ético mais longo que o atual. Significa defender para os magistrados sólida base psicológica e densa preparação, seja nos campos específicos do Direito, seja em áreas mais abrangentes do conhecimento e nos campos da ética pessoal e profissional, do relacionamento humano, da hermenêutica, da liderança, do raciocínio lógico e dos ensinamentos práticos. É mais que compreensível o processo de juvenilização do corpo Judiciário, com o ingresso de jovens sem muito conhecimento e experiência numa folha que conta com cerca de 14 mil juízes, 1 para 13 mil habitantes. Houve, urge reconhecer, um rebaixamento dos níveis. Não é de admirar que, no meio da borrasca, respingos de lama caiam sobre o altar da Justiça.
Os juízes, dizia Bacon, devem ser mais instruídos que sutis, mais reverendos que aclamados, mais circunspectos que audaciosos. Acima de todas as coisas, a integridade é a virtude que na função os caracteriza. A lição, de 1597, ainda é atual. Magistrado por trás das grades é o flagrante da tragédia ética vivida pelo País. Da primeira ou da última instância, no mais distante ou no mais central rincão da Pátria, o juiz deve ser, por excelência, o protótipo das virtudes.
*Gaudêncio Torquato, jornalista, é professor titular da USP e consultor político
FERREIRA GULLAR
Crer que criminalidade cairá sem se resolver questão do tráfico é tapar o sol com peneira |
Já mais de uma vez, manifestei minha opinião de que não se pode apontar, como causa única da criminalidade, a desigualdade social. Certamente, as condições adversas em que uma criança se crie podem influir sobre seu comportamento, mas, como se sabe, a imensa maioria dessas crianças não se encaminha para o crime.
A redução da desigualdade deve ser o objetivo primeiro de uma sociedade civilizada e digna, mas seria ilusão pensar que, com isso, a criminalidade desapareceria. Os exemplos surgem a cada momento: nas últimas semanas, noticiou-se que jovens de classe média alta estão envolvidos com o crime. É inevitável perguntar: se esses jovens nunca conheceram privações, não foram criados num ambiente de violência e têm até curso superior, por que se tornaram criminosos?
Não pretendo ter a resposta para essas perguntas, mas uma coisa é certa: o criminoso pode surgir em qualquer classe social, em qualquer meio familiar independente do nível cultural. Do contrário, como explicar a corrupção que grassa nas altas rodas, envolvendo empresários, juízes e desembargadores?
Li recentemente um artigo acerca da criminalidade entre os jovens de menor idade, em que se relatava o comportamento de um menino de nove anos de idade que havia cometido furtos e agressões. Ao chegar à delegacia, verificada sua pouca idade, foi ele solto mas, em lugar de se dar por contente, cuspiu no rosto do policial que o prendera e o ameaçou de morte. Observou o autor do artigo que esses meninos conhecem muito bem as garantias que lhes dá o Estatuto da Criança e do Adolescente e delas se valem para agir livremente sem temer punições. E levanta a questão: até onde se deverá reduzir a maioridade penal, se um menino de nove anos já age desse modo? Conclui que a solução está na família e na escola.
Essa é a conclusão (equivocada) a que muita gente chega. Claro que dar afeto e educação às crianças é o mínimo que se exige de uma sociedade civilizada. Mas não será isso que impedirá o jovem de optar pelo crime. Resumindo: ninguém sabe exatamente qual o remédio mágico que curará essa doença social. Acho que esse remédio mágico não deve ser buscado, simplesmente porque não existe.
Se não me equivoco, o problema nem sempre tem sido focalizado com clareza e uma das principais razões dessa confusão é, a meu ver, o diagnóstico errado de que a causa é apenas social, quando ela pode ser também psicológica, genética, patológica e freqüentemente vinculada ao consumo e ao tráfico de drogas. Imaginar que se reduzirá a criminalidade sem resolver o problema do tráfico é tapar o sol com a peneira.
Devemos esquecer as medidas mágicas e nos habituar com o fato de que os problemas raramente ou nunca têm soluções únicas e definitivas. Para atacá-los com êxito, é preciso pensar com amplitude, isenção, método e paciência.
Um ponto que, a meu ver, deve ser descartado é a suposição de que, se determinada lei ou agravamento da pena não reduz a criminalidade, de nada adianta agravar a punição. O ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos afirmou que a pena para crimes hediondos deveria ser extinta porque sua vigência não reduzira esse tipo de crime. Se fosse assim, então deveríamos extinguir o próprio Código Penal, já que a criminalidade nunca parou de crescer. Raciocínio semelhante conduz a opor-se à redução da maioridade penal, quando, tanto num caso como noutro, trata-se de dar à sociedade meios de se defender da ação dos criminosos. Na verdade, o critério mais justo e eficaz seria aplicar aos menores penas condizentes com a gravidade do crime praticado.
A tese de que a causa da criminalidade é a desigualdade torna o bandido vítima e a sociedade, culpada. Em função disso, criam-se leis complacentes, que estimulam a prática do crime. Não se trata, claro, de encerrar o condenado num calabouço como num inferno. O certo é fazer das penitenciárias lugar de recuperação e educação profissional do criminoso, mas suficientemente seguro para mantê-lo, pelo tempo necessário, longe do convívio social. Em suma, deve-se compreender que uma coisa é a busca de soluções a longo prazo e outra, urgente, garantir a segurança e a tranqüilidade dos cidadãos agora.
ELIANE CANTANHÊDE
BRASÍLIA - Lula mantém Marina Silva por tudo o que ela representa interna e externamente, como carrega Celso Amorim para palanques, debates, encontros do PT. Marina e Amorim são o verniz de esquerda do governo.
Lula precisa da imagem de Marina e do carimbo "esquerdista" que se solidificou na política externa -uma espécie de último reduto das velhas crenças e pregações tanto do PT quanto do próprio Lula.
Na prática, porém, Lula dá contornos muito mais pragmáticos às duas áreas. No caso do ambiente, já está decidido que as hidrelétricas do rio Madeira vão ser construídas, com ou sem parecer favorável do Ibama, porque o país precisa. Ponto. Não dá para crescer e ter sustentabilidade energética apenas com biomassa e energia eólica.
E, no caso de Amorim, OK, a política externa continua sendo um diferencial à esquerda no conjunto comportado e até conservador do governo, mas com uma diferença bastante nítida neste segundo mandato: Lula se cansou dos arroubos megalomaníacos de Chávez e dos testes de força de Evo Morales, que raiam o patético. E investe em biocombustível com Bush, fortalecendo a aproximação com o resto do continente e com a África.
Além disso, Lula descobriu dois bons nomes para manter os resquícios do verniz mais esquerdista: Fernando Haddad e José Temporão, que são jovens, têm um ar moderno e estão apresentando programas com começo, meio e fim em educação e saúde, historicamente muito identificadas com o PT.
Afora isso, os movimentos sociais estão se coçando e voltaram as invasões do MST. Lula manda dizer que não age "com a faca no pescoço", mas esse tipo de coisa segura uma aura de "governo democrático" que lhe convém. Eles, pois, são convenientes -desde que sob controle. Conclusão: o governo tem um recheio conservador e uma casca "de esquerda". O gosto é popular.
elianec@uol.com.br
CLÓVIS ROSSI
PARIS - Anos atrás, em plenos anos Clinton, com todo aquele formidável boom norte-americano, o líder sindical John Sweeney, presidente da AFL-CIO, a central sindical norte-americana, falou em Davos para eufóricos norte-americanos e um bando de europeus loucos para copiar o modelo dos Estados Unidos.
Sweeney foi de uma dureza ímpar: o modelo é "tóxico", disparou. Logo, não serve para ser importado.
Enumerou a seguir as razões pelas quais a economia norte-americana era forte, todas elas digamos naturais: grande território, população idem, recursos naturais formidáveis, imensa classe média.
Anotei, feliz, o "classe média" como ativo, principalmente porque no Brasil a classe média é geralmente vilipendiada, às vezes com razão, outras vezes apenas porque é feio, em um país miserável, estar acima da massa de pobres.
A fala de Sweeney voltou à memória ao ler a reportagem de Tatiana Resende, na Folha de ontem, sobre o "encolhimento" da classe média no Brasil, detectado em estudo da Unicamp.
Éramos 45,6% em 1996, encolhemos para 36,2% em 2004, para voltar a subir (para 40,6%) em 2005, assim mesmo abaixo do índice de dez anos atrás.
O economista Waldir Quadros, um dos autores do estudo, constata que "ocupações precárias e mal remuneradas vão sendo aceitas como um mal menor. E também cada vez mais os indivíduos e as famílias vão relaxando seus padrões morais na luta pela sobrevivência".
É, de certa forma, o que tenho cansado de escrever neste espaço: o brasileiro foi mediocrizando suas expectativas. E, ao fazê-lo, como constata Quadros, "relaxou seus padrões morais", do que resulta (palpite meu) o nefando quadro político dos últimos muitos anos.
Nesse cenário, será muito difícil, talvez impossível, que o país viva algum boom algum dia.
crossi@uol.com.br
FOLHA DE S PAULO
JOÃO UBALDO RIBEIRO Um ministério para Carlinhos
Mas, vejam, me entusiasmo com meus amigos e companheiros e acabo podendo ser acusado, tanto entre vocês como na Redação, de deplorável usuário de nariz-de-cera ou de enchedor de lingüiça.
Quiçá o seja, mas é sem querer. Sempre tive o temperamento muito patriótico e aí me avassala o apego pelos meus dois territórios, o de Itaparica e o do Leblon, em todo o orbe sem rivais. Mil perdões, procurarei conter o afeto que se encerra em meu peito geriátrico e rápido vou ao ponto. É que, no domingo passado, ao chegar eu para o expediente, Carlinhos bateu na cadeira para que eu me sentasse logo e fez sinal de que tinha algo importantíssimo a dizer.
De fato, tinha. Nada como a experiência, o tirocínio e a inteligência do indivíduo — é por isso que me orgulho de meus amigos. Não vou sequer tentar reproduzir o que ele disse, nem que eu fosse um desses celulares que, além de falar, passam roupa a ferro, filmam longas-metragens, afastam mosquitos e curam mau hálito. Mas, em suma, ele primeiro me explicou que tinha batido na cabeça dele, com surpreendente e imperdoável atraso, o que de muito já lhe devia ter ocorrido.
Ou seja, nós dois éramos praticamente os únicos otários que ainda estavam fora do esquema.
Está todo mundo se fazendo — disse Carlinhos — do Homem, que outro dia disse que já tinha chegado ao ápice de um ser humano, a dr.
Mangabeira Unger, que outro dia estava pedindo impeachment para ele e agora é ministro do Que Der e Vier, ou qualquer coisa assim.
Não interessava. O fato estava na cara e só não víamos porque estávamos sendo burros. Dr. Antônio Carlos, com aquela santa boquinha que Deus lhe deu, disse no Senado que o maior ladrão (atenção, quem disse foi o senador, eu só estou dizendo o que ouvi o senador dizer e até gravei) é o presidente da República, e depois trocaram visitas, por iniciativa do presidente. Dr. Mangabeira só faltou partir para o xingamento corporal, como dizia Waltinho Filósofo. Aí o xingado o nomeou ministro e ficou o dito por não dito. Todos os que xingaram ou podiam ter xingado o governo, ou o presidente, foram nomeados ministros ou coisa por aí. Todo mundo sabe que tem emprego para todo mundo nesse governo, basta assinar aqui, ou meter o dedão mesmo.
E, desculpasse-o eu, agora ele estava diante de quem? De quem? De um grande amigo seu, o que não o impedia de ser ao mesmo tempo o maior trouxa deste país. E ele quase chega junto, mas não chegou. Sim, ele sabia que eu viria com esse lero-lero de “não quero ser ministro”, “já falei mal do Homem a torto e a direito”, “não me corrompo” e outros besteiróis próprios dos poetas e otários, mas não vinha ao caso. Se eu não queria ser ministro, ele queria. Tudo o que eu precisaria fazer era passar a elogiar o presidente assim que Carlinhos fosse nomeado ministro, amigo é para essas coisas.
Besteira minha, mas, tudo bem, então não passasse logo a elogiar, para não dar na vista, já que eu tinha essas frescuras que ninguém tem, talvez algum jegue lá em Itaparica. Mas parasse de esculhambar, mesmo porque eu mesmo dissera que não havia nada para esculhambar, já que nada no governo começara ainda. E, quando eu soubesse qual seria o ministério dele, não ia ter condições, perante os outros homens, de negar apoio. Porque, ficasse eu sabendo, ele seria ministro da Afirmação Feminina. Isso mesmo! Quando lhe ponderei que as mulheres não iriam permitir que esse ministério fosse ocupado por um homem, ele riu e disse que às vezes pensava que Cuiúba estava certo, eu tenho um problema na idéia mesmo. A primeira coisa que ele ia fazer era convencer o Homem — e o Homem ia topar logo porque, esse, sim, não é otário — a baixar uma Medida Provisória decretando que as mulheres são superiores em todos os sentidos.
“Meu slogan vai ser ‘a mulher tem sempre razão’”, disse ele. Sacou? Achava eu que as mulheres iam ficar contra um ministro desses, elas iam ver logo que uma ministra não ia ter condições de fazer isso, tinha que ser homem, seu besta. O tempo me ensinaria, eu demorava mas aprendia.
Está na cara que o Homem quer presidência perpétua e não necessariamente das mais democráticas.
Eu ia terminar compreendendo que é isso que todo brasileiro quer, contanto que haja Bolsa Família. E, quando ele se coroar imperador em 2014, é sangue-bom o suficiente para me nomear visconde do Leblon — quem sabe eu não chego lá, se deixar de fumar?
DORA KRAMER Defender o indefensável
dora.kramer@grupoestado.com.br
O atual colégio de deputados federais, sucessor daquele já conhecido como produtor da “pior legislatura de todos os tempos”, na semana passada foi pródigo em providências para “melhorar a imagem da Câmara”, “recuperar a confiança” da sociedade e “fazer as pazes” com a opinião pública, como preconizavam suas excelências nas promessas de bom comportamento por ocasião da posse do colegiado, em fevereiro.Decidiram criar uma instância formal encarregada de “defender a instituição” das críticas - uma advocacia-geral do Legislativo -, resolveram processar o comentarista Arnaldo Jabor por ter tido o atrevimento de pedir punição para parlamentares que se apropriam de recursos públicos mediante a apresentação de notas fiscais frias de consumo de combustível e deixaram de lado seus estafantes afazeres para se dedicar ao debate da defesa da honra.
Consideram-se vítimas de uma conspiração engendrada com vistas a ocultar seus grandes feitos em prol da Nação. No embalo, houve espaço também para o deputado Ricardo Berzoini, presidente do PT, propor a inclusão na reforma política de um dispositivo de controle dos meios de comunicação em períodos eleitorais.
Zeloso do “bom jornalismo”, Berzoini sugere que a Justiça Eleitoral imponha limites ao noticiário, às análises, às opiniões, interpretações, entrevistas. Na opinião dele, a restrição se faz necessária para evitar julgamentos “preconceituosos e elitistas”, cujo objetivo é “retirar a legitimidade da política”.
O deputado não detalhou seu plano, mas depreende-se que preveja punições. Advertências, multas, prisões, cassação de concessões, suspensão de circulação? Ele não diz e não precisava dizer, porque a intenção é bem explícita: eliminar o contraditório.
Os parlamentares já foram mais sutis. Antigamente, a cada onda de episódios negativos retratados pela imprensa, deputados e senadores ameaçavam “endurecer” a Lei de Imprensa da ditadura. O PT costumava ser contra, aliava-se aos protestos e à defesa da liberdade de expressão e ao direito da sociedade à informação. Com o advento da adesão da esquerda às práticas do autoritarismo, a ofensiva tornou-se mais ousada.
Na proporção direta em que aumentaram também a quantidade e a intensidade das agressões do Parlamento (não só dele) à opinião pública, e a desfaçatez com que essas ofensas se repetem, tornando a instituição, tal como está, indefensável.
O Congresso se diz agredido, mas não pára de agredir aos que juraram representar com dignidade. Se o eleitorado reagisse na mesma moeda, recorreria à Justiça para pedir o voto de volta, mediante ações populares.
Ou acionaria o Ministério Público para assegurar o direito de ter um Poder Legislativo que não legislasse em causa própria, que não funcionasse à base de acertos corporativos, que não malversasse o dinheiro público, que não imputasse a si privilégios, que não protegesse criminosos.
Que não burlasse sistematicamente a presença ao trabalho, que não promovesse absolvições corporativas, que não se submetesse aos ditames do Poder Executivo, que não trocasse votos por cargos, que não abrisse mão de suas prerrogativas, que não se dedicasse, enfim, ao exercício da desmoralização continuada da política e da promoção do descrédito da democracia representativa.
Mais eficaz que constituir uma equipe de advogados para defender o indefensável, é se comportar direito, instituir o império do pudor às faces e revogar as disposições em contrário.
Além da alma
Em alguns dos atos do presidente Lula a aparente ausência de lógica é só aparente. Por trás da aparência revela-se, cristalina, a coerência de pensamento.
No convite ao professor de Harvard Roberto Mangabeira Unger para ocupar a supérflua Secretaria de Ações de Longo Prazo, por exemplo - com direito a anunciado pedido público de desculpas no dia da posse por tê-lo chamado de corrupto e pregado seu impeachment -, Lula exibe a “prova” de que todos são cooptáveis. Inclusive os por ele recentemente citados com menosprezo, sábios “de berço e sobrenome”.
O mesmo movimento se expressou na humilhação consentida de produtores culturais convertidos à causa da falta de ética na política.
No primeiro mandato, a formação de maioria parlamentar mediante o uso de instrumental substancialmente pragmático já confirmara a máxima dos “300 picaretas” e, no início do segundo, a entrega de ministérios a adversários ferrenhos consolidou essa visão sobre a majoritária vocação pela submissão ao poder.
“Os demos”
O PFL mudou de nome e aderiu também às ferramentas da modernidade. O presidente do Democratas, Rodrigo Maia, já alugou uma “sede” para o partido no sítio de vida virtual na internet, o “Second Life”.
O próximo passo será o envio de mensagens partidárias - chamadas panfletos eletrônicos - via telefone celular aos correligionários, em família já denominados “os demos”.
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