Mario Vargas Llosa, E-mail: llosa@estado.com.br, Site: www.llosa.com.br
É verdade que uma imagem vale mil palavras e uma seqüência de imagens, dez mil. O incidente que imortalizou a sessão de encerramento da última Cúpula Ibero-Americana realizada em Santiago, divulgado para o mundo pelas câmeras de televisão, diz mais e ilustra melhor sobre o caudilho venezuelano Hugo Chávez e congêneres, e sobre as relações da Espanha com a América Latina, que dezenas de ensaios sisudos.
Os melhores roteiristas de Hollywood não teriam feito tão bem se quisessem abrir o espetáculo com a imagem - entre cômica e sinistra - de um fanfarrão terceiro-mundista em plena ação. Interrompendo o presidente do governo espanhol que, timidamente, se atrevia a recordar os mandatários latino-americanos de que “nacionalizar empresas não garante nada”, o comandante Hugo Chávez se apodera do microfone e dispara insultos contra José María Aznar, que algum dia convidou a Venezuela a algo tão ignominioso como integrar-se “ao primeiro mundo”, proposta fascista que o caudilho tropical rejeitou, é claro, porque “nós somos humanos e os fascistas não são humanos. Creio que uma serpente é mais humana que um fascista ou um racista”. A estupidez conceitual se enriquece se quem a emite se expressa com a vulgaridade do comandante Chávez e sua gesticulação de quartel. Até aqui, nada que surpreenda, embora, muito que entristeça e envergonhe, se quem assiste a cena é latino-americano e, sobretudo, venezuelano.
Aí, José Luis Rodríguez Zapatero pede a palavra a Michelle Bachelet - a presidente do Chile dirige a sessão - e, esmerando-se no respeito às formalidades e procurando com verdadeira angústia as palavras mais prudentes, procura deixar marcado seu protesto pela “desqualificação” que se fez a um ex-presidente “que foi eleito pelos espanhóis”. Digo “procura” porque, em que pesem suas maneiras educadas, em duas oportunidades ele é grosseiramente interrompido de novo por Chávez que, como a presidente Bachelet lhe cortou o microfone, levanta a voz para que nenhum dos presentes se livre de escutá-lo. A essa altura, o rei da Espanha, ao qual vimos literalmente se alterar e enrubescer durante toda a cena sem poder ocultar a irritação que lhe causa, irrompe com seu contundente “Por qué no te callas?” (Por que você não se cala?) que, por um instante, deixa o soldadinho de outrora quieto e mudo, como certamente lhe acontecia no quartel quando seu superior o descompunha. A presidente Bachelet introduz um inesperado toque de humor ao sugerir com voz melíflua aos presentes “que evitem os diálogos”.
Outro terceiro-mundista e comandante entra em cena, desta vez um Daniel Ortega maltratado pelos anos, com uma calvície acelerada e uma pança capitalista, para se esganiçar atacando a Espanha pelos bombardeios dos Estados Unidos contra a Líbia, pelas supostas depredações da Unión Fenosa e contra os embaixadores espanhóis por conspirarem contra a Frente Sandinista... até que o rei da Espanha se levanta e deixa marcado seu protesto abandonando a sessão.
O ensinamento mais óbvio e imediato desse psicodrama é que ainda existe uma América Latina anacrônica, demagógica, inculta e bárbara à qual é pura perda de tempo e de dinheiro tentar associar a essa civilizada entidade democrática e modernizadora que as Cúpulas Ibero-americanas pretendem criar. Essa será uma aspiração impossível enquanto houver países latino-americanos que tenham como governantes pessoas como Chávez, Ortega ou Evo Morales, para não mencionar Fidel Castro. O fato de terem sido populares e vencido eleições não faz deles democratas. Ao contrário, mostra a profunda incultura política e como são frágeis as convicções democráticas de sociedades capazes de levar ao poder, em eleições livres, semelhantes personagens. Eles não assistem às cúpulas para trabalhar pelo ideal que as convoca. Vão para utilizá-las como tribuna para internacionalizar a demagogia e as bravatas com que mantêm hipnotizados seus povos e, por isso, essas cúpulas estão condenadas ao fracasso e ao circo.
Antes, a estrela indiscutível era Fidel Castro e seus espetáculos antiimperialistas que enlouqueciam de felicidade os jornalistas amantes de escândalos. Agora que Castro deixou de ser caudilho para se converter em analista internacional - o único que fala e disparata com invejável liberdade em Cuba - , o comediante preferido da imprensa marrom é Chávez, imitador e ventríloquo daquele.
Certamente existe uma outra América Latina, mais decente, honrada, culta e democrática que a representada por esses energúmenos. Ela estava ali, nessa sessão de encerramento, invisível e muda, como sempre nessas ocasiões em que os caudilhos, homens fortes, “comandantes” e palhaços se apoderam dos holofotes.
Por que se calam e se deixam aniquilar e eclipsar dessa maneira se são infinitamente mais respeitáveis e dignos de ser ouvidos que aqueles? Não só porque alguns estão subornados pelos petrodólares que o venezuelano espalha a torto e a direito. Com freqüência o fazem porque temem ser vítimas das diatribes e desqualificações daqueles valentões que podem incitar seus extremistas nativos e, também, embora pareça mentira, porque eles, que são governantes civis que procuram mal ou bem ajustar-se às limitações que lhes assinalam as leis e constituições, sentem-se mandatários de segunda ante esses deuses onipotentes que não têm outro freio para seus excessos e velhacarias além de sua vontade soberana.
A saída do rei da Espanha teve a virtude de rasgar o véu de hipocrisia que circunda as Cúpulas Ibero-Americanas às quais, na aparência - não na realidade - comparecem chefes de governo e de Estado dignos do mesmo respeito e consideração. Falso de toda falsidade: o senhor Chávez tem credenciais que o exoneram de toda respeitabilidade civil e democrática, pois, em 4 de fevereiro de 1992, traiu seu uniforme e agiu com felonia tentando um golpe militar contra um governo constitucional e legítimo em que dezenas de oficiais e soldados venezuelanos morreram defendendo o Estado de Direito.
Levantar-se contra um governo constitucional é o pior crime que um militar pode cometer e, por isso, o comandante Chávez foi julgado, condenado e enviado ao cárcere. O fato de que em vez de passar ali muitos anos ter sido anistiado pelo presidente Rafael Caldera e depois premiado por uma maioria de venezuelanos com a presidência da república não o absolve, só mostra até que ponto esse eleitorado estava confuso para se deixar seduzir pelos cantos de sereia de um demagogo e que agora está se lamentando amargamente de seu erro.
O absurdo, o delirante do ocorrido em Santiago é que o comandante Chávez elegerá, para descarregar suas iras e converter em alvo de sua farsa terceiro-mundista, a Espanha, um país cujo governo fez esforços denodados para se relacionar em paz com ele, e, inclusive, dar-lhe uma mão internacional quando todo o Ocidente democrático o censurava por seus atropelos aos direitos humanos e suas cumplicidades com as hostes fundamentalistas.
Algum outro ensinamento a se tirar disso tudo? O de que, como está evidente, a tigres e hienas não se aplacam com vênias e sorrisos e entregando-lhes cordeiros. Convém muito mais a um país democrático como a Espanha privilegiar suas relações com países que representam a civilidade, a liberdade, a legalidade, e com os que têm a segurança de uma cooperação real e de longo prazo, do que tratar, por todos os meios, de conquistar a amizade dos que representam as antípodas do que, felizmente para os espanhóis, é hoje a Espanha.
Nem a Cuba de Fidel Castro nem a Venezuela de Chávez merecem ser, hoje, amigos diletos do governo espanhol, e sim, por sua vez, todos esses governos discretos e esforçados que, no resto do continente latino-americano, trabalham para tirar seus povos dessa barbárie do subdesenvolvimento que representam não só os baixos índices de crescimento e as vertiginosas desigualdades de renda, educação e oportunidades, mas também a demagogia e a fanfarronice políticas encarnadas em Ortega e Chávez que as televisões do mundo todo puseram em evidência no encerramento da Cúpula Ibero-Americana.
É possível que, ao reagir como fez, o rei da Espanha tenha transgredido o protocolo. Mas que alegria nos proporcionou a tantos latino-americanos, a tantos milhões de venezuelanos! A prova? Que escrevi este artigo embalado pelos compassos animados da brilhante cançoneta que agora entoam e dançam em todas as universidades venezuelanas, que se intitula “Por qué no te callas?”, e cuja modinha e letra chovem sem parar em meu computador.
Domingo, 18 novembro de 2007