Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 11, 2007

FERREIRA GULLAR O sorriso de Nara


O especial de TV me pegou de surpresa e, quando dei por mim, fazia uma dupla viagem

ENTRE RECEOSO e comovido, assisti ao especial que conta a carreira e a vida de Nara Leão, a Narinha que todos nós, seus amigos, amávamos.
Voltar ao passado me dói muito e, por isso, sempre que posso, fujo dele. A biografia de Nara, escrita por meu querido Sérgio Cabral, elogiada por todos, guardo comigo mas ainda não tenho coragem de lê-la. Ao ganhar o livro, o abri e logo o fechei, temendo mergulhar na aventura que foram aqueles meses do show "Opinião", aqueles anos, envolvendo tanta gente querida, tanta coisa preciosa que se foi para sempre.
O especial de TV me pegou de surpresa e, quando dei por mim, fazia uma dupla viagem, do passado ao passado, já que o presente era ver o perdido: o rosto dela, seu sorriso, sua voz, e recuperá-lo, ao mesmo tempo, uma vez que, paralelamente ao que a televisão mostrava, outras cenas, outras vozes se tornavam presentes como numa tocata, em cuja tessitura melódica, notas e tempos se entrelaçam, emergem e somem, ali na obscuridade do teatro, enquanto Boal ensaiava as cenas do futuro espetáculo. E do fundo de sombras, rindo, surge João do Vale, brincalhão. Zé Kéti cantarola para Nara: "Podem me bater, podem me prender...". Vianinha está parado sob um cone de luz, num dos cantos do palco. Em volta a escuridão da platéia vazia. Vazia porque todos se foram ou porque estão por vir? Estamos antes ou depois do passado?
No shopping da rua Siqueira Campos, já faz tempo que não existe mais aquele palco de arena com a platéia em volta. Platéia feita de velhas cadeiras de um velho cinema, que ali chegaram sujas de lama, que apodreciam ao relento. Todos nós nos empenhamos, madrugada adentro, a lavá-las para afinal, naquela noite de dezembro de 1964, abrirmos nosso teatro ao público. Era uma vitória e uma resposta, depois de tudo que havíamos perdido com o incêndio da UNE, a queima de nossos livros e sonhos de mudar o Brasil. O antigo auditório da UNE havia sido transformado num teatro, que inauguraríamos no dia 6 de abril se, cinco dias antes, não o tivessem incendiado. O show "Opinião" era nossa resposta, na voz frágil daquela mocinha de classe média que, como nós, redescobrira um sofrido Brasil, cantando: "Mas eu não mudo de opinião".
Desse samba de Zé Kéti nasceu o show, porque ele deu o nome ao disco de Nara, que tinha na capa uma foto dela, de braço erguido, feita por Jânio de Freitas. O disco, por sua vez, nascera do Zicartola, um restaurante-casa de samba, surgido pouco antes do golpe na rua da Carioca, se bem me lembro, onde Nara se apaixonou pelo samba de morro. Mal o disco saiu, veio o golpe. Ao ouvi-lo, Vianinha teve a idéia de um show musical que falasse dos problemas do Brasil, reunindo um compositor do morro, um compositor do sertão e um cantora carioca, moradora da avenida Atlântica.
O entusiasmo com o novo espetáculo só era ameaçado pelo temor da polícia, já que nós, seus produtores, éramos nada mais nada menos que o CPC da UNE, odiado pelos golpistas fardados e à paisana. Para enganá-los, pedimos emprestado o nome do Teatro de Arena de São Paulo, que apareceu como produtor do espetáculo, o que era corroborado pela presença de Augusto Boal, como seu diretor. Essa escolha foi providencial, não só por essa razão, mas também porque ele imprimiu ao show qualidade essencialmente teatral.
Tudo isso, não nessa ordem e, sim, na desordem da lembrança comovida, que mistura os fatos e violenta a cronologia, tanto que, num relâmpago, releio, em Lima, a última carta de Vianinha, exasperada pela revolta contra o câncer que inapelavelmente o matava. Mas, nesse momento mesmo, na tela da televisão, Nara sorri docemente, agora-outrora, tal como naqueles dias, mirando-me com candura. Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Denoy discutem na pequena sala de reuniões do teatro, quando Tereza propõe fazer, às segundas-feiras, a Fina Flor do Samba, um espetáculo com compositores, passistas e ritmistas das escolas de samba.
A luz se apaga de repente, a cena, a platéia, a cidade se desfazem na treva. Nara, rouca, mal consegue cantar, militares invadem meu apartamento, corro pelas ruas com uma maleta que se abre e despeja roupas, poemas, documentos subversivos. Dobro uma esquina e estou em Moscou, depois em Buenos Aires e finalmente sou interrogado no DOI-Codi. Soltam-me altas horas da noite na avenida Brasil. Soa o telefone, é Nara que me diz: "O tumor sumiu de meu cérebro, estou curada". Minha vontade é abraçá-la, beijá-la, mas como? Seu sorriso congela na tela da TV.

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