A presença americana no Iraque é o alvo de uma safra
de filmes feitos "a quente", que condenam o conflito
Isabela Boscov
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No devastador No Vale das Sombras (In the Valley of Elah, Estados Unidos, 2007), Tommy Lee Jones é um militar aposentado que procura pelo filho: em licença numa base americana depois de um período no Iraque, o rapaz não só deixou de se reapresentar ao pelotão, como parece ter sumido da face da Terra. Em alguns dias, será declarado desertor. O pai, Hank, conversa com os amigos e os superiores do filho, liga para velhos companheiros pedindo ajuda, vai à polícia – e encontra apenas evasivas ou desinteresse. Numa visita ao alojamento do desaparecido, surripia o celular deste, onde encontra fragmentos de imagens feitas durante ações. Tommy Lee Jones é um mestre da introversão e, quanto menos ele fala, mais o espectador se conecta ao seu pressentimento de que algo terrível aconteceu. Quão imensamente terrível, porém, é algo que só saberá ao final da investigação conduzida por Hank e pela detetive de polícia Emily (Charlize Theron, numa grande atuação). O novo filme do diretor Paul Haggis, que começa a ser exibido no país nesta sexta-feira, representa um colossal salto dramático em relação ao ultramanipulativo Crash. Haggis usa a forma do whodunit, em que se tenta identificar o autor de um crime, para chegar a um culpado bem mais incontrolável do que este ou aquele homem: a guerra. Não a guerra como entidade genérica, mas esta guerra, a do Iraque, com suas especificidades. No Vale das Sombras é um dos primeiros filmes a fazer tal indiciamento, mas não será um dos únicos. Num fenômeno sem precedentes no cinema americano, o conflito no Iraque começa a originar produções em número suficiente para constituir desde já um gênero (veja quadro abaixo).
Entre 1939 e 1945, rodaram-se dezenas de filmes acerca da conflagração que se desenrolava na Europa e no Pacífico – mas eram feitos com o intuito de promover o esforço de guerra. Os enredos de contestação surgiram apenas com o envolvimento americano no Vietnã. Ou, bem entendido, depois que ele se encerrou. Enquanto os soldados ainda lutavam no Sudeste Asiático, apenas uma produção abordou diretamente o tema – a patriotada Os Boinas Verdes, com John Wayne. O que a ocupação iraquiana está criando, portanto, é uma criatura nova: filmes que a dissecam e, até agora, exclusivamente a condenam enquanto ela ainda está em curso. Existe aí uma ironia, ou talvez uma tentativa de compensação. No caso do Vietnã, a batalha pela opinião pública foi travada nos jornais e noticiários, que não se furtavam a mostrar as imagens mais horrendas do conflito e contribuíram assim para torná-lo politicamente insustentável. Desde que os Estados Unidos entraram no Iraque, entretanto, as cenas de massacres ou de caixões cobertos com a bandeira americana têm sido submetidas a uma pesada autocensura, em nome do combate ao terror e por medo das acusações de "antipatriotismo". Os cineastas se adiantaram para ocupar esse vácuo.
A primeira leva foi a dos documentários, de Gunner Palace, sobre o início da hostilidade iraquiana à força de ocupação, ao recente No End in Sight, que analisa os erros cometidos na aventura militar da gestão George W. Bush – e argumenta que eles são irremediáveis. Nos últimos tempos, porém, a opinião pública americana deu uma guinada decisiva. Nas últimas pesquisas, já são maioria os cidadãos que acham que a guerra está sendo mal conduzida, que o objetivo anunciado de "levar a democracia ao Iraque" não será atingido, e que as tropas deveriam ser trazidas de volta. Que pensam, enfim, que seu país se enfiou num atoleiro. Diante desse clima, a esmagadora maioria democrata da indústria do entretenimento passou a se sentir à vontade para falar a platéias mais amplas, com filmes de ficção estrelados por nomes famosos e bancados pelos grandes estúdios.
A safra que vem por aí contém de tudo – exceto filmes que endossem a intervenção. (O que chega mais perto dessa visão é O Reino, com Jamie Foxx, que vai bem até começar a tratar os "nativos" árabes como estúpidos ou como alvos anônimos para tiros.) São dramas em que as famílias pagam o ônus da perda (Grace Is Gone, com John Cusack) ou sofrem sob acusações infundadas (O Suspeito, com Reese Witherspoon e Jake Gyllenhaal); vistas dos bastidores de Washington (Leões e Cordeiros, em que o senador interpretado por Tom Cruise tenta jogar uma cortina de fumaça sobre o fiasco iraquiano); e, nos casos mais ousados, recriações de atrocidades cometidas por soldados americanos (Redacted, de Brian De Palma, e Battle for Haditha, do inglês Nick Broomfield). Estão em produção, ainda, roteiros sobre a dura volta para casa, como Stop Loss, em que Ryan Phillippe tenta desertar durante uma licença no Texas.
Nenhum desses filmes, porém, é tão cirúrgico quanto No Vale das Sombras. Das sugestões tanto de sofrimento quanto de sadismo contidas nas imagens do celular do soldado desaparecido à relutância do comando militar em que se apure o seu paradeiro – além da má vontade da polícia local, cansada dos problemas com combatentes em licença –, o cenário que o diretor e seus dois protagonistas desenham é perturbador: um cenário em que o travo de ilegitimidade que paira sobre essa guerra transforma a própria natureza dos homens que vão lutar nela, fazendo deles seres irreconhecíveis no front e pá-rias em casa. Hank, que lutou no Vietnã, não compreende como algo tão monstruoso possa ter acontecido a seu filho, e com ele. A conclusão a que No Vale das Sombras assoma, então, não é que o Iraque seria um novo Vietnã. É que pode estar sendo ainda pior do que ele.
Como a nova safra de filmes sobre o Iraque e o terror abarca os diversos aspectos do conflito, da experiência do combate ao trauma das famílias DE DENTRO DOS GABINETES O REINO LEÕES E CORDEIROS DE DENTRO DE CASA O SUSPEITO GRACE IS GONE DA LINHA DE FRENTE REDACTED BATTLE FOR HADITHA |