O atraso zoofílico
"Há um perigo crescente: a visão
agressivamente anticiência de certos
defensores dos animais. O negócio deles
é parar a ciência em nome da bicharada"
Autoridades cariocas promoveram um episódio que, na aparência, só engorda o catálogo do folclore político da cidade. Aconteceu o seguinte: os vereadores aprovaram uma lei proibindo maus-tratos aos animais, mas despacharam à prefeitura outra versão da lei, e o prefeito Cesar Maia, mais afeito à intriga blogueira do que à maçante rotina de alcaide, apôs seu jamegão à versão errada. Com isso, proibiu-se o uso de animais em pesquisas científicas na cidade. Era o Rio nas trevas medievais. Os laboratórios cariocas, que reúnem 20% das pesquisas brasileiras, fechariam as portas. Graças a reportagem do jornal O Globo, a lei foi corrigida. Agora, pune maus-tratos, mas permite o uso de cobaias nas pesquisas.
Apresentado assim, o episódio parece só uma trapalhada devidamente superada. É engano. Por trás da fachada inofensiva, o caso ilumina um perigo crescente: a visão agressivamente anticiência de certos defensores dos animais. Por eles, o uso de animais nas pesquisas seria proibido. É o que previa o projeto original do vereador Cláudio Cavalcanti, do DEM carioca. Para eles, não importa que a proibição de cobaias resulte na suspensão de todos os estudos para produzir vacinas, remédios, para medir toxicidade, identificar alergia... O importante é que os ratos fiquem bem. Exagero?
Em fevereiro, o deputado tucano Ricardo Tripoli propôs a criação do Código Federal de Bem-Estar Animal. Tem mais de 130 artigos. Lá pelas tantas, diz: "É vedado o uso de animais para fins científicos ou didáticos se o procedimento causar dor, estresse ou desconforto ao animal". Ora, qual a experiência que não causa desconforto ao bicho, por mais cuidado que se tenha ao manipulá-lo? Na prática, o tal código proíbe experiências com animais no país. Um delírio.
Há uma fatia dos pró-bichos que se julga dona de uma visão avançada, pós-antropocêntrica, mas é apenas medieval. Porque demoniza a ciência, como sendo uma área insensível e diabólica do saber humano, e cria um falso conflito entre pesquisa científica e ética animal. Falso porque a comunidade científica, em peso, é favorável à regulamentação do uso de animais em pesquisas e criou comissões de ética que orientam sobre o assunto. Qualquer instituição séria tem uma.
Os cientistas não querem liberdade para ser cruéis. Querem lei, disciplina, ética. Tanto que lançaram um manifesto pela aprovação do projeto que trata do assunto e está parado há mais de dez anos no Congresso. Os defensores dos animais, que deveriam apoiar a idéia, pois disciplina o manejo de cobaias, fizeram silêncio. Por quê? Uma pista: o projeto que tramita há mais de dez anos protege os bichos, mas não a ponto de interditar a ciência, como o tal código do deputado. Isso mostra que, no fundo, muitos dos pró-bichos, no seu radicalismo cego, não querem um único rato, camundongo ou coelho como cobaia. O negócio deles é parar a ciência em nome da bicharada. É o obscurantismo zoofílico.
Em tempo: o Nobel de Medicina deste ano saiu para os três criadores de uma técnica que simula doenças em camundongos, permitindo identificar o efeito de certos genes na saúde humana. Se dependesse dos pró-bichos radicais, os três cientistas, em vez de premiados, seriam presos.