O presidente mundial da Coca-Cola diz que
a era dos refrigerantes ainda vai durar, mas
que o futuro pertence aos sem calorias
Lauro Jardim
Ana Araujo | "O açúcar é parte natural da vida humana. A questão é se você consome muito" |
Três anos atrás, o irlandês Neville Isdell fruía sua aposentadoria sob o sol do Caribe quando foi chamado para assumir a presidência da Coca-Cola. A empresa vivia sua maior crise desde a fundação, em 1886. Os números espetaculares dos anos 80 e 90 – quando o valor de mercado da empresa se multiplicou por 36 – haviam ficado para trás. Isdell, um ex-executivo da Coca-Cola que por duas vezes fora preterido para o posto de número 1, topou o desafio. Trocou a bermuda pelo paletó e desde o ano passado a empresa voltou a crescer. Na quarta-feira, anunciou lucros 13% maiores no trimestre. O desafio de Isdell, no entanto, é mais complexo do que dar novo impulso à marca mais valiosa do mundo: como continuar a crescer quando seu principal produto, o refrigerante, vive sob patrulhamento em tempos eco-diet-politicamente corretos? "O açúcar é parte da vida", diz. "A questão é quanto se consome." Isdell, 64 anos, falou a VEJA durante sua visita a Brasília, há duas semanas. Assim que iniciou a entrevista, pediu uma Coca Zero. Durante os noventa minutos de conversa, bebeu apenas dois goles. Mas não largou a garrafa em momento algum.
Veja – Nos últimos três anos, o consumo de refrigerantes nos Estados Unidos caiu, pela primeira vez na história. Isso significa que a era dos refrigerantes já atingiu o seu auge no maior mercado do mundo?
Isdell – Certamente que não. Na verdade, a sensação que se tinha desde quando eu retornei era que isso ocorria no mercado global também. Mas o que se viu, país a país, é que viramos o jogo. A situação nos Estados Unidos tem peculiaridades. Houve uma elevação no preço do açúcar muito maior que a inflação no período, o que levou a aumento de preços. Mas o mais importante é que nós havíamos parado de acreditar na Coca-Cola, no nosso jeito de fazer as coisas. Nos negócios, muitas vezes os problemas que se manifestam ocorrem porque se deixa de acreditar. É preciso fazer com que as pessoas se sintam energizadas pelo negócio. É claro que se tem de trazer a inovação também, o que não é simples. Assim que assumi, investi 400 milhões de dólares em inovação. Isso funcionou nos Estados Unidos, senão teríamos tido um decréscimo ainda maior do que tivemos.
Veja – Como vender como saudável um produto que leva açúcar em sua composição?
Isdell – O açúcar é uma parte natural da vida humana desde os primórdios de nossa existência. A questão é se você consome muito. Ou se você usa o açúcar de forma natural. O corpo consome essa substância de diversas formas. Mas, se o problema é o açúcar, há opções. Podemos oferecer um produto com zero caloria, um produto sem açúcar...
Veja – A Coca-Cola Zero, lançada em sua gestão, é o refrigerante de maior sucesso dos últimos vinte anos. Isso não é exatamente conseqüência da retirada do açúcar do produto?
Isdell – É uma questão de escolha. Existem pessoas que não desejam consumir tanto açúcar – e elas já tinham a opção da Coca Light. O que não tínhamos conseguido antes era um sabor tão próximo ao da Coca-Cola original quanto a Coca-Cola Zero. Isso prova justamente o oposto: que as pessoas gostam do sabor original da Coca-Cola. E isso é que fez a diferença. A opção já existia, mas a distância de sabor em relação ao do produto original era maior. Essa é a razão do bom desempenho da Zero em todo o mundo, mais do que qualquer outra coisa. Se as pessoas resolveram cortar calorias, não tem problema: nós daremos a elas opções com o sabor mais próximo possível ao da Coca-Cola original.
Veja – A tendência é, aos poucos, a Coca-Cola Zero tomar o lugar da original?
Isdell – Globalmente, a Coca-Cola original tem crescido em termos de consumo. Mas concordo que em algum grau existe a substituição. Chega-se a um ponto em que você compete com você mesmo. É inevitável, mas essa substituição é menor do que imaginávamos. Por isso, quem olhar nossos números globais verá que eles estão crescendo. A exceção são os Estados Unidos.
Veja – Em 2004, logo que assumiu, o senhor disse que "os refrigerantes serão no futuro portadores de saúde e benefícios ao bem-estar". É possível prometer isso?
Isdell – A inovação é uma jornada bem longa, não acontece num estalar de dedos. E ela não está somente no produto, mas também na embalagem, na refrigeração, no modo de produzir. A primeira inovação é a Zero: a questão do bem-estar está relacionada ao aumento e redução de calorias. Nos EUA, lançamos agora a Diet Coke Plus, com vitaminas B6 e B12, além de zinco e magnésio. Vamos lançar dois produtos semelhantes no Reino Unido. Além disso, estamos aumentando nossa linha de produtos não gaseificados, como águas e sucos.
Veja – Mas o senhor seria capaz de afirmar que refrigerante faz bem à saúde?
Isdell – Não vendemos os refrigerantes como uma bebida saudável – embora não deixem de sê-lo. E sim como algo prazeroso, excitante e refrescante. Lembre-se de que a Coca-Cola foi criada há 121 anos. Tem sua origem em ingredientes naturais. Não a tratamos, portanto, como algo não saudável.
Veja – Qual é a próxima tendência em bebidas não alcoólicas?
Isdell – São os produtos que não têm calorias, mas contam com ótimo sabor. Esse é o nosso desafio, e é o que estamos fazendo em termos de pesquisa. O mundo verá também uma fragmentação e um cruzamento de categorias. Há ainda uma tendência de misturar sabores globais.
Veja – A marca Coca-Cola é a mais valiosa do mundo. Vale 67 bilhões de dólares. É possível valorizá-la num tempo em que a patrulha contra as calorias é tão severa?
Isdell – Sim. Na minha posição, eu deveria mesmo dizer que sim... Mas digo isso porque realmente acredito. Se você olhar para a participação de mercado global que temos em refrigerantes, existe um grande número de oportunidades ainda disponíveis. Neste novo século, as pessoas esperam coisas diferentes das empresas. Uma das grandes plataformas de nossa estratégia é a responsabilidade social corporativa. Só poderemos florescer no futuro se pudermos ser vistos, na percepção e na realidade, como um elemento funcional de cada comunidade de que fazemos parte. A companhia precisa evoluir da forma como a sociedade evolui.
Veja – Como a Coca-Cola quer ser reconhecida como líder global em responsabilidade social e sustentabilidade gastando 300 bilhões de litros anuais de água para fabricar seus refrigerantes?
Isdell – Em primeiro lugar, é preciso dizer que não somos os maiores consumidores de água do planeta. A conta que você cita inclui a água que os agricultores usam para a irrigação. Mas não vou usar isso como defesa. Declarei recentemente que nos tornaremos neutros em relação à utilização de água. Ou seja, nosso objetivo é restituir cada gota de água empregada na fabricação das bebidas. A forma para alcançarmos isso será por meio da redução global de consumo de 3% a 4% ao ano, mesmo com o crescimento do negócio. Para colocar em termos simples, fecharemos as torneiras que vazam. Vamos acabar com o desperdício onde ele existir. A segunda ação é a de reciclagem: botar a água que era desperdiçada de volta no processo com suas características originais. Incluímos também no nosso programa o replantio de vegetação em áreas devastadas. E o melhor exemplo disso é o que temos feito em termos de recuperação de margens de rios e da Mata Atlântica.
Veja – A Coca-Cola vai gastar 27 milhões de reais nos próximos cinco anos para replantar espécies nativas no Brasil, mais 20 milhões de dólares para restaurar a vegetação das margens dos rios em alguns países. Não é uma migalha para uma empresa que fatura 24 bilhões de dólares por ano? Dá para se intitular uma "empresa sustentável" com tão pouco?
Isdell – Não acho que seja pouco – o que estamos tentando fazer é agir como multiplicadores. A WWF (uma das mais conhecidas ONGs ambientalistas do mundo) acredita que o que fizemos pode levar outras empresas a valorizar essas iniciativas e agir do mesmo modo. E isso é o mais importante. Não se trata somente de dinheiro. Por isso, construir alianças é tão importante. No fim das contas, a empresa terá de fazer um julgamento sobre como investe o seu dinheiro: esse investimento tem de estar alinhado ao mesmo tempo com os interesses da sociedade, dos acionistas e certamente da companhia.
Veja – Nos anos 60, quando o senhor virou executivo da Coca, para ser bem-sucedido bastava ser bom de marketing e distribuição. Hoje há questões da saúde, sustentabilidade... Como foi sua adaptação ao novo mundo?
Isdell – Nos últimos anos, a sociedade passou a ter uma atitude diferente em relação a esse assunto, mas essa preocupação já fazia parte do DNA da companhia. Eu me formei em sociologia e queria trabalhar com serviço social. Portanto, não é uma área que descobri de repente: é uma área que evoluiu e eu evoluí com ela. Aliás, lembro-me de quando reencontrei um antigo professor de sociologia e disse que estava entrando para a Coca-Cola. Ele me perguntou se eu estava saindo do negócio de serviço social. Disse a ele que acreditava que poderia afetar mais vidas trabalhando em negócios do que atuando diretamente no serviço social. Jamais me arrependi dessa escolha. Essa é a evolução dos negócios. Se, por exemplo, atuo sobre o gás utilizado nos refrigeradores da companhia em todo o mundo, influencio na questão ambiental do isolamento térmico. Para mim, portanto, foi uma evolução muito simples.
Veja – Cerca de 75% dos lucros da Coca-Cola vêm de fora dos EUA. A empresa sempre foi um símbolo americano. Como não sofrer com o crescente antiamericanismo no mundo?
Isdell – Nossa origem é americana, mas sempre pensamos no dia-a-dia de cada país. Esse é o segredo do sucesso do nosso sistema de franquia. Nosso produto não é importado, mas feito em cada um dos países, empregando as pessoas desses lugares. E, no entanto, a Coca-Cola é muito internacional. A razão desse sucesso é que nós nos engajamos com a intensidade correta nas sociedades locais. Falamos com cada consumidor individualmente. Essa é a chave. Minha visão é que cada vez mais nos tornaremos uma companhia global. A origem é americana, mas, eventualmente, 95% de nossos lucros virão de outros lugares do mundo – simplesmente porque é onde 95% das pessoas estarão. Somos a empresa mais internacional de todas. E nossos gestores refletem isso. Nosso executivo-chefe é turco, nosso responsável por investimentos bancários é irlandês, eu sou irlandês, temos um colombiano respondendo pela Ásia, um mexicano pela América Latina, um nigeriano gerenciando a África e uma francesa respondendo pela Europa.
Veja – Há oito anos, em entrevista a VEJA, o então presidente, Douglas Ivester, falou com entusiasmo de uma máquina de refrigerantes que aumentaria automaticamente o preço do produto quando o calor ficasse mais forte. O que houve com esse projeto?
Isdell – A tecnologia existe. São máquinas inteligentes, e estamos usando a tecnologia de formas diversas, como, por exemplo, para controlar o consumo de energia. Veja bem, esse projeto é de oito anos atrás. Hoje em dia, essa questão não está mais na minha agenda.
Veja – O senhor estava aposentado, tomando sol em Barbados, quando foi lembrado para comandar a companhia. O que leva um homem de 61 anos a voltar ao campo de batalha?
Isdell – Eu não estava totalmente aposentado. Participava do conselho de administração de algumas companhias. Minha mulher não queria que eu voltasse, mas me deu algum tempo para pensar. Eu me perguntava: por que faria isso? Tenho uma vida sossegada e boa condição financeira; por que trocar tudo isso por um desafio de tamanha proporção? Mas me dei conta de que estava fazendo a pergunta errada. A pergunta certa era: eu poderia viver comigo mesmo tendo recusado uma proposta tão desafiadora como essa? A minha vida era a Coca-Cola. Tudo o que eu tinha era relacionado à companhia. Portanto, não poderia viver comigo mesmo se tivesse recusado o desafio.
Veja – Há três anos um grupo de deputados brasileiros exigiu conhecer a fórmula secreta da Coca-Cola. Insinuavam que teria cocaína. A ameaça deu em nada, mas o que aconteceria se a Justiça brasileira obrigasse a empresa a revelar a fórmula? A Coca-Cola sairia do Brasil?
Isdell – Já enfrentamos situações semelhantes no passado, em outros países. Não, nunca chegaria a sair do país. As pessoas razoáveis sempre chegam a boas soluções. Acho que estamos falando de pessoas assim. A exigência não é justa. O bom senso acaba prevalecendo. Foi o que aconteceu naquela situação.
Isdell – (pausa) Deixe-me dizer a você... (nova pausa). Não vou lhe contar (risos).