Entrevista:O Estado inteligente

sábado, outubro 06, 2007

VEJA ENTREVISTA Luciano Huck

Huck no caldeirão

O apresentador Luciano Huck diz que as reações
negativas a seu desabafo depois de um assalto
partiram de quem não conhece a periferia


Ronaldo França

Oscar Cabral

"Se chegarmos ao nível em
que se tenha de andar de carro
blindado para ir à padaria,
alguma coisa está errada.
Resolvi não me esconder mais"

O apresentador Luciano Huck foi vítima de dois ataques em menos de uma semana. O primeiro, um assalto em São Paulo, no qual dois bandidos levaram seu relógio. O segundo golpe deu-se em seguida à publicação de um artigo, na Folha de S.Paulo, em que procurou fazer um desabafo sobre a violência que sofrera. As seções de cartas dos jornais e comentários postados nos blogs receberam, nos dias subseqüentes, insultos e críticas coléricas ao apresentador. O tom geral das manifestações era o de que, rico e famoso, Huck tinha mais é que se resignar em ser vítima de bandidos. Ora, isso é uma distorção mental típica da burguesia pseudo-esquerdista brasileira. Como é sobejamente sabido, os pobres abominam ladrões e assaltantes. "Vou à periferia toda semana. No país inteiro. Conheço muito melhor a realidade brasileira do que os que me criticaram", diz Huck, 36 anos, um dos profissionais de televisão mais bem-sucedidos do país.

Veja – Como disseram nas cartas aos jornais e nos blogs, gente da elite assaltada tem mesmo é que sofrer calada?
Huck – No Brasil parece que virou crime você trabalhar honestamente, ganhar dinheiro e gastar como quiser. Não sofro preconceito. Acho que é porque sou a mesma pessoa na minha casa, na Globo, no Complexo do Alemão. Falo igual e me visto igual. Não troco de roupa para ir a favelas. Mas deixa eu dizer o que penso da elite. Nela tem gente de todos os tipos. Tem pessoas ótimas, que passam seus dias tentando ajudar os outros. Mas também tem gente que não faz nada para ninguém, que só vê o seu lado. Tem de tudo. Não dá para rotular e dizer que se é elite é bom ou é ruim. É como na polícia. Tem um enorme contingente de policiais bons. E garanto que eles são muitíssimo mais numerosos. Agora, tem gente ruim, e não são poucos. O problema é que o que eles fazem aparece mais.

Veja – Como foi exatamente o assalto?
Huck – Foi um assalto-padrão, que ocorre nas esquinas de São Paulo todos os dias. Durou no máximo quinze segundos. Eu saía de um restaurante com um amigo. Estava no banco do carona. Os bandidos chegaram de moto e bateram no vidro com o revólver. Abri a janela uns 15 centímetros. Eles pediram o relógio. Eu entreguei. Depois, pediram o do meu amigo, que também entregou. Eles foram embora. Não deu para ver como eram, porque estavam de capacete. Provavelmente me seguiram desde o restaurante, porque sabiam que eu estava com um Rolex. Só pediram isso. Tem uma máfia especializada em roubo de relógio em São Paulo. São profissionais.

Veja – O que você sentiu depois do assalto?
Huck – As pernas começaram a tremer e fiquei muito nervoso. Depois, veio a raiva e, por fim, o sentimento de impotência. A sensação é a de que não há nada que se possa fazer. Eu os vi indo embora e pensei: não é possível que ninguém vá fazer nada. Não acho que a polícia de São Paulo tenha de se mobilizar para ir atrás do meu relógio. Ela tem preocupações mais importantes. O que se tem de fazer é trabalhar para não deixar isso acontecer. Mas isso já passou. Não foi nada tão extraordinário, nem a primeira vez que fui assaltado.

Veja – Não? Já passou por isso antes?
Huck – Muitas vezes. Um dia estava com minha mãe dentro de uma sapataria e fomos assaltados. Eu tinha 12 anos. Já roubaram minha casa duas vezes em São Paulo. Também entraram na minha casa de praia, em Angra dos Reis. Fui vítima de um seqüestro-relâmpago. Então, está claro que esse assalto não foi um trauma especial na minha vida. Nada proporcional à repercussão que meu artigo provocou. Como os nervos estão à flor da pele, meu artigo foi como pingar uma gota de limão em uma ferida. Arde o corpo inteiro.

Veja – O que mais o incomodou no que leu nas cartas publicadas pelos jornais e nos comentários dos blogs?
Huck – Vou lhe falar uma coisa: as críticas não me incomodaram nem um pouco. A crítica fundamentada faz refletir. O que se fez, no entanto, foi a crítica gratuita. Falaram de burguesia, que é um discurso velho, de trinta anos atrás. Chegaram a falar em "elite branca". Quem criticou perdeu tempo com uma bobagem. Não escrevi motivado pela perda de um relógio. Escrevi como cidadão. As pessoas perderam o direito de ir e vir. Não estou nem aí para as bobagens que falaram.

Veja – Você foi acusado de só ter acordado agora para a realidade, para os problemas do país...
Huck – Quem pegar as cartas dos leitores ou os blogs e artigos em jornais verá um monte de manés que escreveram. Garanto que já fui à periferia milhares de vezes mais do que eles. Vou toda semana. No domingo, antes de viajar para Nova York, onde fui gravar um quadro do Caldeirão, andei no Complexo do Alemão, uma das áreas mais violentas do Rio de Janeiro. Vou, entro, saio, converso com todo mundo. Meu maior ativo na vida é ouvir as pessoas. Ouço muito. Vejo o que acontece no país. Sei que meu bem-estar pessoal passa pelo bem-estar coletivo. Nos últimos cinco anos tenho me dedicado a entender por onde eu poderia entrar nessa questão e fazer minha parte. Foquei meu trabalho na educação e profissionalização de jovens e na inserção deles no mercado de trabalho por meio do audiovisual. Criei uma ONG, o Instituto Criar. Todo ano recebemos 200 jovens, que vêm indicados por intermédio de um processo rigoroso, bem amarrado. Eles são escolhidos por sessenta ONGs e dez escolas públicas. Todos recebem meio salário mínimo, para evitar que os pais os obriguem a sair de lá para trabalhar. O índice de aproveitamento no mercado de trabalho tem sido de 70%, com um salário médio de 800 reais.

Veja – A visão geral de seus críticos leva a um caminho perigoso. É como se os Jardins, uma das regiões mais ricas de São Paulo, tivessem de virar o Jardim Ângela, um dos bairros mais pobres do país. O correto é que o Jardim Ângela vire uma região mais aprazível, não acha?
Huck – Ando por todos os lugares. Posso garantir que, em certo sentido, o Capão Redondo e o Jardim Ângela estão melhores do que os Jardins. Deixe-me explicar o que quero dizer: tem um trabalho incrível lá de organizações sociais que está fazendo a diferença. Não acredito que os Jardins vão um dia virar o Jardim Ângela. Acho que todas as áreas da cidade merecem o mesmo tratamento. Não estou dizendo com isso que este ou aquele governo seja omisso. Só que tem uma série de projetos sociais nas periferias que estão dando certo, e esse é o caminho que temos de seguir.

Veja – Você escreveu que tinha carro blindado e que desistiu dele, porque não queria assumir que a cidade em que vivia era Bogotá. Adianta o gesto individual?
Huck – Se chegarmos ao nível em que se tenha de andar de carro blindado para ir à padaria, é porque alguma coisa está errada. Pouquíssimos podem comprar um carro blindado. Resolvi que não iria me dobrar à lógica de me esconder cada vez mais. Lembro que, na minha adolescência, Bogotá era sinônimo do que havia de mais violento no mundo. A gente ficava assustado só de ver aqueles filmes em que de repente apareciam vários sujeitos armados, de cima dos prédios, que vinham e seqüestravam alguém. Levavam as pessoas para dentro da mata e elas nunca mais apareciam. Hoje, Bogotá é outra cidade, muitas vezes melhor. O que aconteceu ali? Foi um investimento pesado em educação, em organização social. Eles focaram em quatro ou cinco coisas e foram em frente. Esse é o caminho. Não quero ficar andando de carro blindado em uma cidade cada vez pior. Quero trabalhar para que meu filho, o Joaquim, quando tiver a minha idade, possa andar pelas ruas sem medo.

Veja – E agora, depois do que aconteceu, pensa em comprar um carro blindado novamente?
Huck – De forma alguma. No Rio, canso de ir para a Zona Sul passando pelo meio da Rocinha. Vou com o vidro aberto. Penso em continuar fazendo minha parte para ajudar o país. Só tem duas coisas que faço hoje na vida. Trabalho na Globo e no meu projeto social. Esse é meu foco. Quero viver neste país, que eu adoro. Claro que tenho condições de, se quiser, ir morar em Miami, com minha família. Mas não quero. Meu lugar é aqui.

Veja – E qual é o caminho, por exemplo, para melhorar a segurança pública?
Huck – Não sei, nem tenho credenciais para discutir segurança pública. Só não gostaria de ficar sendo assaltado na rua. O que sei é que o sujeito só vai parar de assaltar se tiver oportunidade. Vou dar um exemplo. No AfroReggae (projeto social na Favela de Vigário Geral, no Rio de Janeiro) tem o Feijão, que é um dos coordenadores. Trabalha lá honestamente. Só que um ano atrás ele era bandido. Não era um qualquer. Era líder de facção. Um dia disse que queria largar aquela vida e o AfroReggae ofereceu uma chance. Ele pegou e não largou mais. Da mesma forma, há muita gente nessa situação. Se a gente começar agora, um dia o filho daquele sujeito que me assaltou vai poder se formar. Pode ser um engenheiro, levando a vida honestamente. Se a gente não fizer nada, vai ficar difícil mudar esse panorama. Tem de ser educação pública de qualidade. Não adianta termos escolas públicas de baixíssimo nível e escolas particulares de Primeiro Mundo. O sujeito só entra na Universidade de São Paulo, a USP, se tiver muito dinheiro para pagar os melhores colégios. O sistema de cotas não resolve. O negócio é ensino fundamental e médio de qualidade para todos.

Veja – Mas também é fundamental que se tenha uma polícia eficiente...
Huck – Claro que sim. Basta ver que durante o Pan-Americano o Rio parecia a cidade de Genebra, na Suíça. Temos de ter inteligência policial, equipamentos e informação. Mas só a polícia não resolve. O controle da violência não é o estado penal, em que você se limita a gerir por meio da prisão, do Judiciário e da polícia. Isso não vai funcionar nunca. O caminho trilhado pelo ex-prefeito de Nova York Rudolph Giuliani (que implantou a política de tolerância zero) é o fim da história. É fácil parar de ter assalto nos Jardins. Basta colocar policiais lá. Mas isso não vai reduzir a criminalidade em São Paulo. A solução passa pela educação. E não me refiro apenas à escola. Falo do sujeito que joga papel na rua, que joga lata de dentro do ônibus. As pessoas têm de vaiar quem joga lixo na rua, quem avança o sinal. Temos de cobrar educação uns dos outros também. Quando ando por aí, nas comunidades carentes, vejo que o lugar mais bonito é sempre a igreja ou a ONG. Nas cidades do interior, os mais bonitos são a igreja, a prefeitura e a delegacia. Está errado. O lugar mais bonito tem de ser a escola. Ela tem de ser sedutora para as crianças.

Veja – Muitos criticam a televisão por incitar a violência e a sexualização precoce. Qual sua opinião?
Huck – Não concordo. Os críticos podem dar um ou dois exemplos de coisas em que a TV não contribui para o país, mas eu dou vinte exemplos de como ela é importante. O que faz com que o Brasil tenha uma noção de país, uma unidade, é a televisão. Estou na Globo há oito anos e tenho absoluta noção de como esse assunto é tratado de maneira séria. Tudo o que vai ao ar é visto antes por alguém com essa preocupação. Não acho que as cenas da novela, do sujeito beijando a mulher, vão despertar a sexualidade. A internet é um caminho muito mais aberto para o menino ou a menina que quiser ter acesso a qualquer conteúdo sexual. Na minha época, a gente tinha de fazer operações de guerra para comprar uma revista de mulher pelada. E ficava dois anos com a mesma revista. Hoje, a internet é uma estrada escancarada para isso. É injusto atribuir essa culpa à televisão. Além do mais, quem manda na televisão é o telespectador.

Veja – O que você faria diferente se tivesse poder?
Huck – Falta projeto. Cadê o projeto para a educação? Por que ela não é tão competente quanto outras áreas? Fico vendo a pujança com que o investimento estrangeiro tem entrado aqui. Vejo a bolsa atingindo índices nunca antes alcançados. Fizemos o câmbio flutuante, um instrumento fabuloso. O controle da inflação. Temos intelectuais de primeira, esportistas que estão nos primeiros lugares no mundo. O Brasil tem uma imagem no exterior hoje que nunca teve. E, no entanto, apesar de todas essas conquistas, há problemas básicos com os quais não conseguimos lidar. O direito de ir e vir, que é vedado em extensas áreas das grandes cidades, é um exemplo. Isso é vergonhoso, perto de tudo o que está acontecendo no país.

Veja – Em seu artigo, você se referiu ao presidente ao dizer que gostaria de saber no que ele está pensando. O que quis dizer exatamente?
Huck – Eu não estava falando do Lula em si, nem de qualquer governante. Acho muito bonito o programa Bolsa Família, acho legal distribuir leite, mas não é o que vai resolver. Isso é apenas um agrado. Não é assim que se distribui renda. Como disse, o Brasil estará melhor no dia em que o filho daquele sujeito que me assaltou estiver na faculdade, preparando-se para ajudar a fazer do Brasil um lugar melhor para ele e para os outros.

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