Essas, em linhas gerais, as premissas teóricas da prevalência dos partidos sobre a vontade de seus filiados eleitos, em que se assenta o conceito de fidelidade partidária. Mas até aqui, na prática, era como se tivessem sido desenhadas na areia. Do governo da República ao mais obscuro dos 5.600 municípios brasileiros, a ausência de freios legais à ciranda de filiações, desfiliações e refiliações pela vintena de siglas disponíveis - salvo nos 12 meses anteriores a uma eleição - deu aos donos das canetas que nomeiam e demitem e das chaves que abrem e fecham os cofres públicos o poder de fabricar maiorias legislativas, transitórias como os seus próprios mandatos, e a servidão de ter de fabricá-las, a que preço for, para ver os seus projetos aprovados. Em razão disso, já não bastassem os efeitos perversos inerentes ao sistema eleitoral, a política brasileira se degradou numa não menos conhecida correia de transmissão de aberrações.
A imagem da correia vem de que a infidelidade partidária é movida por uma seqüência de arranjos interesseiros, estratégias de sobrevivência e ascensão política que escarnecem da manifestação das urnas, numa cascata que vai do local ao estadual e ao nacional - ou vice-versa. Tão inumeráveis os episódios do achincalhe do troca-troca que basta estender a mão, de olhos vendados, e se apanhará uma amostra escabrosa. Fique-se, pela preeminência que o personagem adquiriu por ter sido guindado à presidência do Conselho de Ética do Senado pelo então presidente da Casa, Renan Calheiros, com o caso do representante do Tocantins, Leomar Quintanilha. Ele se elegeu pelo PFL, foi para o PMDB, daí para o PC do B (!), antes de voltar a ser peemedebista desde criancinha. No plano municipal, então, o entra-e-sai é assombroso - pela freqüência e por suas proporções.
Em 2004, o chamado carlismo, centrado no PFL de Antonio Carlos Magalhães, elegeu 370 dos 417 prefeitos baianos. (Outros 10 aderiram em seguida.) Dois anos depois, vitorioso o candidato a governador do arquiinimigo PT, Jaques Wagner, não tardou o estouro da boiada, intensificado pela morte de ACM. Às vésperas do prazo final para filiações de candidatos ao pleito de 2008, calculava-se que entre 70 e 100 daqueles 370 iriam se bandear para algumas das siglas do novo governismo, a começar do PMDB. "Estamos sendo picados pelo nosso próprio veneno", comentou então um lugar-tenente carlista. "É natural. Nos beneficiamos disso durante muito tempo." Eis o ponto nevrálgico do entendimento unânime do Tribunal Superior Eleitoral, na noite de terça-feira, de que vale também para prefeitos, governadores, senadores e o presidente da República o que estipulara, com o respaldo posterior do Supremo Tribunal Federal, em relação a vereadores e deputados: suas cadeiras não lhes pertencem, mas aos partidos pelos quais se elegeram. Só poderão abandoná-los, sem perder os mandatos, em raras circunstâncias designadas.
Muita água ainda passará sob a ponte até que a reiteração da norma produza o aguardado resultado prático de inibir o escambo de apoios políticos, que passa, de um lado, pelo loteamento da administração e a alocação espúria do dinheiro do contribuinte e, de outro lado, pela chantagem a que os governantes estão expostos pelos trânsfugas insatisfeitos com a parte que lhes coube no butim. Surge, porém, finalmente, uma barreira à política das lealdades compradas.