Poucas crianças, muitos velhos
O dramático impacto econômico e cultural do envelhecimento
da população e da falta de bebês nos países ricos
Diogo Schelp
Vadim Ghirda/AP |
ABISMO DE GERAÇÕES Criança romena em comemoração da UE. A Romênia tem uma das taxas de fecundidade mais baixas do mundo. Acima, aposentadas em Milão: a Europa já tem mais idosos que crianças. |
Luca Bruno/AP |
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Na ordem natural da vida, cada geração deveria gerar descendentes suficientes para repor as mortes e ainda acrescentar alguns indivíduos à população. A União Européia inverteu essa lógica da natureza. De acordo com dados divulgados neste mês pelo Instituto de Política Familiar, sediado na Espanha, pela primeira vez na história o número de europeus com mais de 65 anos ultrapassou o de menores de 14 anos. Numa sociedade de população estável, espera-se uma proporção igual de crianças, jovens e adultos, mas menor de idosos em comparação a todos os outros grupos populacionais. O que está ocorrendo é a soma de dois fatores conhecidos. O primeiro é a queda na taxa de fecundidade dos europeus. A mínima para repor as perdas naturais de uma população é de 2,1 filhos por mulher. A média européia é de 1,37. O segundo fator é o aumento na expectativa de vida decorrente da melhoria das condições de vida e de assistência médica. Menos bebês e mais velhos é uma equação com sérias conseqüências populacionais a médio prazo. Em meados deste século, a Alemanha e a Itália terão menos habitantes que hoje. A França e a Espanha devem permanecer estáveis, mas só se continuarem a atrair imigrantes. Do ponto de vista populacional e cultural, a Europa Ocidental estará irreconhecível em duas ou três gerações.
O envelhecimento da população e a falta de bebês não são uma exclusividade européia. Trata-se de tendência generalizada entre os países ricos e desenvolvidos. Na Coréia do Sul e na Austrália, a taxa de fecundidade caiu abaixo da linha de reposição da população. O Japão apresenta o maior porcentual de idosos em relação ao total de cidadãos – 28%. Dos membros do G8, o grupo dos países mais ricos do mundo, apenas os Estados Unidos têm uma taxa de fecundidade capaz de manter a população estável. Isso, somado à imigração, garante o crescimento do número de americanos. Na Alemanha, na Espanha, na Itália e no Japão, a falta de bebês e o aumento no contingente de idosos são temas discutidos em tons apocalípticos. Não é sem razão. Tamanho e perfil da população costumam ser fatores relevantes no desempenho econômico de uma nação. Uma maneira clássica de calcular o crescimento do PIB potencial de um país é somar os índices de aumento da força de trabalho e da produtividade. Se a força de trabalho crescer 1% e a produtividade 2% em determinado ano, por exemplo, o aumento do PIB potencial será de 3%. Essa equação se explica pelo impacto que a falta de bebês pode ter sobre a força produtiva de uma nação no futuro. Menos trabalhadores significa menos produção de riqueza, menos gente para consumir e, o que é mais perturbador, menos contribuintes para manter o sistema de previdência, sobrecarregado pela multidão de aposentados.
Também nesse aspecto o planeta não é igualitário. Apenas quatro em cada nove pessoas vivem em um país com taxa de fecundidade abaixo do índice de reposição. As taxas de fecundidade continuam elevadíssimas nos países mais miseráveis da Ásia e da África (veja quadro). Isso pode mudar se essas sociedades se modernizarem. A história mostra que avanços na educação, mudanças no papel social da mulher e melhorias nas condições de saúde derrubam a taxa de fecundidade. "Na fase em que a Europa construiu sua hegemonia cultural e econômica, o número de europeus cresceu de maneira espantosa. No ano de 1900, um em cada quatro habitantes do mundo era europeu", disse a VEJA o sociólogo austríaco Meinhard Miegel, diretor do Instituto para Economia e Sociedade de Bonn, na Alemanha. Hoje, a proporção é de um em cada nove. O futuro do sistema de pensões tornou-se uma tormenta global, especialmente para alemães, italianos e japoneses, moradores de países com crescimento populacional negativo ou próximo disso. No Japão, há quatro trabalhadores na ativa para cada aposentado. Em 2050, estima-se que a proporção será de três para dois. Na Alemanha, a Previdência representa o maior gasto social do estado. Em países com sistema assistencial precário, o efeito da baixa taxa de fecundidade adquire contornos trágicos. Na China, com média de apenas 1,7 filho por mulher, os idosos dependem quase que unicamente dos filhos ou netos. Devido à política do filho único, o país enfrenta hoje uma distorção: em determinada fase da vida, um jovem adulto tem de sustentar sozinho dois pais e quatro avós. Isso em um país em que a expectativa de vida aumentou de 40,8 anos para 71,5 anos em apenas cinco décadas e em que há um desequilíbrio de gêneros: nascem 100 meninas para cada 118 garotos. Nesse ritmo, a China pode tornar-se um país com mais velhos do que crianças antes mesmo de atingir o pleno desenvolvimento. Essa tendência demográfica é um dos motivos pelos quais a China dificilmente poderá ultrapassar os Estados Unidos como a principal potência mundial.
A falta de bebês tem efeitos inesperados no modo de vida de um país. Na Toscana, a região de paisagens deslumbrantes no norte da Itália, cuja capital é Florença, o saldo entre nascimentos e mortes resulta na perda de 8.220 habitantes por ano. A conseqüência disso é o acelerado esvaziamento das áreas rurais. Não falta apenas mão-de-obra para cuidar da terra. Os proprietários também estão ausentes. É freqüente que o filho único não seja capaz de manter a fazenda herdada dos pais ou avós. No momento, a região está repleta de estrangeiros, sobretudo americanos e ingleses. Eles compram as villas abandonadas, cujos preços caíram bastante nos últimos anos devido ao excesso de oferta, para usá-las nas férias.
Os Estados Unidos são um exemplo de país rico que conseguiu uma maneira eficiente de garantir o crescimento – ou ao menos a estabilidade – populacional pela atração de imigrantes. A taxa americana de fecundidade é de 2,05 (semelhante à brasileira). O fluxo de imigrantes, no entanto, é intenso: no saldo das pessoas que entram ou saem do país, os Estados Unidos ganham um novo morador a cada 31 segundos. Na Europa, onde a taxa de fecundidade está bem abaixo do ponto de equilíbrio, nada menos que dois terços do crescimento populacional, no ano passado, se deveram à chegada de imigrantes. A França e a Holanda são os únicos países da União Européia em que o número de nascimentos foi maior do que o de estrangeiros recém-chegados. O Parlamento europeu estuda desde o mês passado a criação de um blue card, um sistema para dar vistos de trabalho de dois anos (com possibilidade de renovação) para imigrantes qualificados. O objetivo é reverter uma batalha que está sendo vencida pelos americanos: dos trabalhadores qualificados que emigram em todo o mundo, 55% vão para os Estados Unidos e apenas 5% para a Europa. O Velho Continente recebe, sobretudo, imigrantes sem qualificação vindos da África e de países muçulmanos da Ásia e do Oriente Médio. Isso cria um sério dilema político e de identidade cultural.
Ganha voz na Europa uma vertente de políticos e demógrafos que vê na imigração uma solução plausível apenas a curto prazo. Há várias razões para isso. Primeiro, a dificuldade de alguns países em integrar seus imigrantes. "Um dos poucos países que têm conseguido repor sua população com imigrantes, sem choques culturais, é a Espanha, que encontrou na América Latina uma fonte de trabalhadores que falam sua língua e têm costumes parecidos", disse a VEJA o holandês Ralph Hakkert, demógrafo do Fundo de População das Nações Unidas. Entre os imigrantes na Espanha, o maior grupo é o de latino-americanos. Eles representam quase 40% dos estrangeiros que moram no país. Jovens latino-americanos, filhos ou netos de espanhóis, são surpreendidos com cartas enviadas pelas autoridades espanholas com ofertas de generosas bolsas de estudo na Espanha. Sem afinidades culturais dessa natureza, a França, a Inglaterra e a Alemanha têm importado imigrantes da África e da Ásia, sobretudo muçulmanos. A dificuldade em integrar esses recém-chegados e o medo de ver a identidade nacional diluída pelo mar de recém-chegados azedam o debate imigratório naqueles países.
Ronald Zak/AP |
O FUTURO É DELES? De modo geral, os imigrantes vindos do Terceiro Mundo têm famílias mais numerosas que os europeus. Na França, a taxa de fecundidade dos imigrantes é 35% mais alta que a nacional. Isso aumenta o temor francês de perda de identidade cultural. Acima, muçulmana em Viena, na Áustria. |
Outra preocupação diz respeito ao número necessário de imigrantes. A demanda pode crescer a ponto de ser quase impossível preencher as vagas. A República Checa tem 10 milhões de habitantes. Mantida a atual taxa de fecundidade de 1,2, cairá para apenas 8 milhões em 2050. Para suprir a diferença, o país necessitaria de 2 milhões de imigrantes. Mesmo que os checos se dispusessem a receber tanta gente de fora, enfrentariam outro problema: até a metade do século, a população mundial tende a parar de crescer. A concorrência por imigrantes ficará tremendamente acirrada. O Brasil, que se tornou um grande pólo emigrante nas últimas duas décadas, não poderá contribuir com mão-de-obra para os países ricos por muito tempo. O número de brasileiros deve entrar em declínio em 2050, depois de atingir o pico de 260 milhões de habitantes. Hoje está em 187,2 milhões, segundo dado divulgado pelo IBGE no mês passado. A população brasileira cresce por inércia, apesar de a taxa de fecundidade estar ligeiramente abaixo do índice de reposição e de o país enviar para fora mais gente do que recebe. "O crescimento ainda acontece porque a atual taxa de fecundidade de dois filhos se refere às brasileiras que estão nascendo agora e que serão as futuras mães", diz Fernando Albuquerque, gerente do Projeto de Dinâmica Demográfica, do IBGE, no Rio de Janeiro. Ele completa: "Ainda há mulheres de outras gerações em idade fértil, e essas têm uma taxa de fecundidade maior, o que impulsiona o crescimento". Como o Brasil só vai enfrentar daqui a algumas décadas o problema que atualmente descabela os europeus, temos tempo para observar as soluções encontradas em outros países para o envelhecimento e o declínio populacional.
Um recurso comum na Europa são os prêmios concedidos à maternidade. "Mais eficientes do que esses incentivos são as políticas que dão às mulheres condições de ter filho sem precisar deixar o trabalho", disse a VEJA o demógrafo americano James Vaupel, diretor do Instituto para Pesquisa Demográfica Max Planck, de Rostock, na Alemanha. Foi a entrada das mulheres no mercado de trabalho, afinal, o fator histórico que levou à queda nas taxas de fecundidade – ajudado, obviamente, por métodos anticoncepcionais confiáveis. A preocupação com a carreira leva as mulheres a adiar o casamento e, por conseqüência, a ter filhos mais tarde. "No Japão, 80% das mulheres na casa dos 20 anos são solteiras, o que é um índice altíssimo", disse a VEJA o demógrafo americano Michel Teitelbaum, da Fundação Alfred P. Sloan, em Nova York. Os países do norte da Europa são os únicos com um padrão de casamento tão tardio quanto o japonês, com uma diferença: na Escandinávia, as mães solteiras são responsáveis por metade dos nascimentos, contra apenas 2% no Japão. A boa aceitação social da mãe solteira explica em parte por que a Suécia, a Dinamarca e, fora da Escandinávia, a França têm taxas de fecundidade relativamente altas comparadas com as de outros países ricos. A outra razão é a existência, nesses países, de boa estrutura de creches e de leis que facilitam o retorno da mulher ao trabalho depois da licença-maternidade.
As medidas que podem permitir a muitos países conviver com o envelhecimento populacional passam por mudanças culturais. A solução mais óbvia, e que encontra maior resistência, é aumentar a idade de aposentadoria. Trata-se da maneira mais rápida de evitar a falência dos sistemas previdenciários. Manter a contribuição do trabalhador por mais três a cinco anos já seria suficiente para aliviar as contas da Previdência na maioria dos países. "Trata-se de uma solução justa, porque a tendência é envelhecermos com cada vez mais saúde e, portanto, com maior disposição para continuar trabalhando", disse a VEJA Jitka Rychtaríková, pesquisadora do departamento de demografia da Universidade Carlos, em Praga, na República Checa. Elevar a idade de aposentadoria pode ser pouco recomendável em países em que o declínio populacional não foi resultado da modernização da sociedade. A Rússia perdeu quase 4 milhões de habitantes nos últimos cinco anos não só porque as mulheres têm poucos filhos – já era assim na década de 80 –, mas porque a taxa de mortalidade subiu, principalmente entre os homens. A degradação no sistema de saúde russo é um dos motivos. O alcoolismo é outro. "Há 40% mais mortes do que nascimentos na Rússia, enquanto na Alemanha a proporção é de 10%", disse a VEJA o pesquisador americano Murray Feshbach, especialista em demografia russa do Centro Woodrow Wilson, em Washington, nos Estados Unidos. O hiato populacional faz com que o Exército russo tenha dificuldade para preencher suas fileiras: o número de jovens em idade de alistamento caiu pela metade nas últimas décadas. O presidente Vladimir Putin encontrou um culpado sui generis para a baixa taxa de fecundidade das mulheres russas: os homossexuais do país. Uma piada de mau gosto para um problema sério.
Com reportagem de Denise Dweck e Alexandre Salvador