Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, outubro 18, 2007

Merval Pereira - Principismo




O Globo
18/10/2007

Nos últimos dias, a realidade tem se encarregado de obrigar o presidente Lula a, mais uma vez, se aproximar do modelo de governo dos arquiinimigos tucanos, que passou a vida criticando. Até problemas recorrentes em países tropicais em desenvolvimento, como a dengue, servem para mostrar que as "bravatas" oposicionistas do PT não passavam de jogo de cena eleitoral para enganar incautos. Na campanha de 2002, por exemplo, Lula lançou seu programa de saúde no Rio, alegando que a epidemia de dengue no estado era o exemplo do desleixo maior do governo federal, numa insinuação contra o ex-ministro da Saúde José Serra, seu adversário na disputa. A epidemia foi até atribuída à demissão de mata-mosquitos terceirizados. Cinco anos de governo Lula depois, o ministro da Saúde, José Gomes Temporão, anuncia uma "epidemia nacional" de dengue.

Também a luta incansável pela prorrogação da CPMF mostra que as "bravatas" oposicionistas não passavam disso. A CPMF, imposto inventado pelos tucanos com o nome de contribuição, para não ser dividido com estados e municípios, teve em Lula um adversário ferrenho, tendo mesmo ido ao Congresso trabalhar para a bancada do PT não aprová-la.

Lula admitiu recentemente que mudou de opinião ao virar presidente. Depois de justificar a mudança alegando não ser "um poste, mas um ser humano", utilizou-se do jargão político para decretar, com a desfaçatez que só um ex-líder operário poderia ter: "Você não governa com principismo. Principismo você faz no partido, quando pensa que não vai ganhar nunca as eleições. Quando vira governo, governa em função da realidade que tem".

Quando falou assim de público, usando uma linguagem das assembléias partidárias dos anos 80, quando estava em discussão a formação do Partido dos Trabalhadores, Lula estava mandando um recado a seus correligionários petistas.

Na impossibilidade de encontrar definições que agradassem às várias tendências e grupos internos, a estratégia do partido acabou sendo subordinada ao que chamam de "principismo", uma série de princípios gerais de esquerda.

Em nome dos quais o PT se recusou durante muito tempo a fazer acordos ou participar de alianças partidárias - não aceitou entrar na frente oposicionista, inclusive no governo de transição de Itamar Franco, após a queda de Collor, não assinou a Constituição de 1988.

Lula já havia derrubado esse "principismo" quando exigiu a formação de uma aliança política com a direita, através do empresário José Alencar, para afinal chegar ao poder em 2002. E continua se afastando do "principismo" que ainda amarra o PT quando insiste em dar espaço político aos partidos que formam sua coalizão partidária, ou ter candidato único à sua sucessão, mesmo que não seja do PT.

E é também para enganar os eleitores "principistas" que Lula diz uma coisa e faz outra. O caso das privatizações é emblemático. Lula recuperou no segundo turno um eleitorado de esquerda porque foi contra as privatizações, acusando o PSDB de "ter mania" de privatizar tudo. Chegou, no primeiro debate na televisão, a questionar o adversário tucano Geraldo Alckmin se eles, "que haviam privatizado tudo, pretendiam privatizar a Amazônia".

O tucano só descobriu muito tempo depois que o governo havia aprovado um projeto de lei complementar que "dispõe sobre a gestão de florestas públicas para produção sustentável", que poucos meses atrás entrou em vigor. Um milhão de hectares da Floresta Amazônica, no Estado de Rondônia, serão privatizados pelo governo em regime de concessão, sendo que inicialmente serão arrendados nos próximos meses 220 mil hectares.

Não bastasse a desinformação, Alckmin ainda tentou fazer nos últimos dias de campanha uma denúncia contra o projeto, que havia sido aprovado com apoio do PSDB e do então PFL. Em vez de mostrar a incoerência de Lula, colocou-se contra a privatização, numa clara incoerência, ele sim, com a linha de seu partido.

Agora vem o caso das privatizações das estradas que, para enganar os "principistas", o governo quer dizer que não é privatização, mas "concessão". Segundo o Dicionário Houaiss, privatizar é "colocar sob controle de empresa particular gestão de bem público", não apenas vender patrimônio público. Discutir, em contextos completamente distintos, se o modelo atual é melhor ou pior do que o adotado em 1995 pelo governo de Fernando Henrique Cardoso é apenas tentar entreter os ingênuos "principistas".

Cada modalidade tem suas explicações técnicas, e não se sabe nem mesmo se o preço do pedágio será tão baixo mesmo, já que, logo depois do leilão, já havia especulações sobre a necessidade de um reajuste antes mesmo de o pedágio entrar em vigor.

Além do mais, pedágio barato não é sinônimo de estradas boas. O ministro dos Transportes, Alfredo Nascimento, anunciou, com um sorriso vitorioso, que as próximas privatizações serão em prazo menor que 25 anos.

Em alguns países, a combinação de pedágio barato e prazo de concessão curto tem provocado falta de investimento das concessionárias, em busca do lucro que não vem do pedágio. O modelo Lula-Dilma de privatização de estradas já tem, pelo menos, uma vantagem: vai obrigar a revisão das atuais concessões, e dá um novo parâmetro para futuras privatizações.

Se o modelo petista de privatização der certo, o que só saberemos depois que o governo Lula tiver terminado, será melhor para o usuário. Mas o importante mesmo é que o conceito de privatização está vitorioso, e esse é o fulcro da questão. O resto é principismo.

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