Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 07, 2007

MARIO VARGAS LLOSA O véu que não é um mero véu

A Generalitat, governo autônomo da Catalunha, obrigou a escola pública de Gerona a autorizar a entrada de Shaima, uma aluna marroquina de 8 anos, que não ia à escola havia uma semana porque os diretores da instituição proibiram que ela freqüentasse as aulas enquanto estivesse usando o hijab, o véu islâmico. A diretoria baseou sua proibição no regulamento da escola, que proíbe o uso, nas vestimentas dos alunos, ''''de qualquer elemento que possa causar discriminação''''. Para o governo, no entanto, o ''''direito à escolarização'''' deve prevalecer sobre as normas internas das instituições de ensino.

Contrariamente ao que ocorre em países como França ou Grã-Bretanha, onde existem leis sobre o uso do véu islâmico nas escolas públicas, na Espanha não existe nenhuma legislação a respeito, e até agora a permissão ou proibição de portar o véu islâmico fica a critério dos próprios centros de ensino. O fato ocorrido com a garota marroquina cria um precedente que, se prevalecer e se estender, abrirá as portas da instrução pública ao chamado multiculturalismo ou comunitarismo. Na minha opinião, essa perspectiva é extremamente perigosa para o futuro da cultura da liberdade na Espanha.

À primeira vista, alguns considerarão esta afirmação exagerada ou apocalíptica. Que mal pode haver no fato de uma pobre criatura, habituada a usar o hijab, de acordo com a sua religião e os hábitos familiares, usá-lo durante as aulas? Não seria uma crueldade obrigá-la a retirá-lo e exibir os cabelos, sabendo-se que para sua crença e hábitos comunitários isso seria tão traumático quanto se exigíssemos que as meninas cristãs mostrassem o busto ou as nádegas? Daí a considerar que a proibição do uso do véu pelas meninas nos colégios é um preconceito antimuçulmano, ou um etnocentrismo colonialista e racista é um pequeno passo.

Contudo, não é tão simples. O véu islâmico não é um mero véu que uma menina de 8 anos decide livremente pôr na cabeça porque gosta e acha mais confortável ter os cabelos cobertos. É o símbolo de uma religião em que a discriminação da mulher ainda é mais forte do que em qualquer outra - em todas elas, mesmo nas mais avançadas, as mulheres ainda são discriminadas -, um defeito tradicional da humanidade e do qual a cultura democrática conseguiu que nos livrássemos em parte, mas não inteiramente, graças a um longo processo de lutas políticas, ideológicas e institucionais que foram mudando a mentalidade e os costumes e ditando leis destinadas a freá-lo.

Uma dessas grandes conquistas é o laicismo, um dos pilares sobre os quais se assenta a democracia. O Estado laico não é contra a religião. Pelo contrário, garante o direito de todo cidadão de ter e praticar sua religião sem interferências, desde que essas práticas não infrinjam as leis que respaldam a liberdade, a igualdade e os demais direitos humanos que são a razão de ser do Estado de Direito.

DISCRIMINAÇÃO

As escolas públicas de um Estado laico não podem ser confessionais porque, se o fossem e privilegiassem uma religião em detrimento de outras, ou daqueles que não crêem, exerceriam uma discriminação inaceitável numa sociedade realmente livre. Numa sociedade livre a religião não desaparece, fica circunscrita ao âmbito privado, fora das escolas e das instituições públicas.

É claro que os fiéis podem fundar escolas particulares de caráter confessional, ou lecionar, nas igrejas ou no seio das famílias, todas as doutrinas e crenças que quiserem incutir em seus filhos. Mas a religião não pode invadir o domínio público sem que os princípios básicos da cultura democrática, sobretudo a igualdade e a liberdade dos cidadãos, se fraturem, estabelecendo-se hierarquias e privilégios opressivos.

O véu islâmico nas escolas públicas é uma porta de entrada pela qual os inimigos do laicismo, da igualdade entre homem e mulher, da liberdade religiosa e dos direitos humanos, pretendem alcançar alguns espaços de verdadeira extraterritorialidade legal e moral no seio das democracias, algo que, se admitido por elas, poderia conduzi-las ao suicídio. Porque, usando o mesmo argumento para que o véu islâmico seja autorizado nas escolas, é possível exigir também, como o fizeram e conseguiram os islâmicos em algumas cidades da Europa, que existam piscinas municipais separadas para homens e para mulheres porque, para as mulheres muçulmanas, é imoral compartilhá-las com os homens.

E, se é o caso de respeitar todas as culturas e costumes, por que a democracia não autorizaria também os matrimônios negociados pelos pais e, em última instância, até mesmo a ablação do clitóris das meninas, praticadas por tantos milhões de fiéis na África e em outros lugares do mundo? O multiculturalismo parte de um falso pressuposto que é preciso rejeitar totalmente: o de que todas as culturas, pelo simples fato de existirem, são equivalentes e respeitáveis. Não é verdade. Existem algumas culturas mais evoluídas e modernas que outras.

Embora seja verdade que nas culturas mais primitivas ainda existem práticas, usos e crenças que enriqueceram a experiência humana, e ensinamentos que as outras podem aproveitar, também é verdade que em muitas culturas subsistem preconceitos e hábitos bárbaros, discriminatórios e até criminosos que nenhuma democracia pode permitir no seu seio sem negar a si mesma e retroceder no longo caminho percorrido para a civilização.

A LEI FRANCESA

Foi assim que entendeu a França, onde o tema do véu islâmico é objeto de antigos e intensos debates. A França deu um bom exemplo para os demais países democráticos ao proibir por lei, em 2004, ''''o uso de elementos que mostrem um caráter religioso nas escolas e institutos públicos''''.

No início, essa medida foi taxada por alguns supostos ''''progressistas'''' de reacionária, baseada em preconceitos contra os imigrantes de origem muçulmana. Não era. Pelo contrário, a razão profunda da lei é dar oportunidade a todos, estrangeiros e nacionais, de qualquer raça, cultura ou religião, de trabalhar e viver na França dentro de um ambiente de legalidade e liberdade, que lhes permita continuar praticando suas crenças e cultivando seus hábitos, desde que compatíveis com as leis vigentes. E, é claro, renunciando às crenças e costumes que não o são, como fizeram as igrejas cristãs no passado, quando tiveram de adaptar-se às sociedades abertas.

Se considerarmos que a democracia significou um extraordinário avanço em relação aos regimes despóticos de outrora, é difícil entender que ela deva valer apenas para os democratas e que os países democráticos, em nome da falácia da equivalência absoluta das culturas, admitam em seu seio enclaves antidemocráticos ou práticas incompatíveis com os princípios básicos da igualdade e liberdade.

Aqueles que defendem o multiculturalismo e o comunitarismo têm uma idéia estática e essencialista das culturas que foi desmentida pela história. As culturas também evoluem, com base no avanço da ciência e nos intercâmbios, cada vez mais freqüentes no mundo moderno, de idéias e de conhecimentos - que, pouco a pouco, vão transformando convicções, práticas, crenças, superstições, valores e preconceitos.

Um muçulmano moderno, digamos, do Líbano ou do Cairo, tem muito pouco a ver com os muçulmanos fundamentalistas de Darfur, que arrasam aldeias e queimam famílias inteiras pelo fato de serem pagãs. Colocá-los dentro da mesma etiqueta cultural é tão absurdo como considerar idênticos, pelo fato de serem cristãos, os católicos geralmente tolerantes e democráticos das sociedades abertas dos nossos dias e os inquisidores ou os cruzados medievais que torturavam e assassinavam em nome da cruz.

UNIVERSALISMO

Se os países democráticos desejam colaborar de alguma maneira para que a religião muçulmana experimente o mesmo processo de secularização que permitiu à Igreja Católica adaptar-se à cultura democrática, o pior que podem fazer é renunciar a conquistas tão importantes como o laicismo e a igualdade para que não pareçam etnocentristas e preconceituosos.

Não existe etnocentrismo, mas universalismo e pluralismo, no fato de não fazer concessões na defesa dos direitos humanos e da liberdade.

O sistema francês parece-me mais claro e mais eficaz do que o adotado pela Grã-Bretanha, onde o Estado transferiu para os colégios e institutos de ensino a decisão de autorizar ou proibir o uso do véu islâmico em sala de aula. Esse poder, contudo, só vale no que se refere aos estudantes.

Em compensação, as professoras estão proibidas de dar aula usando o véu, de acordo com uma decisão judicial do ano passado, depois de uma professora ter se apresentado na classe dentro de um niqab, espécie de toldo de vestir que cobre o corpo feminino dos pés à cabeça. Não é absurdo que se proíba às professoras o que se permite às alunas, ou vice-versa?

Nas fotografias publicadas na imprensa, Shaima, a garota marroquina de 8 anos, sorri feliz com seus grandes olhos porque poderá ir à escola portando o véu que, pelo que ensinou sua avozinha, as boas crentes devem usar sempre. Será que continuará tão feliz agora que foi transformada na exceção à regra em seu colégio? Creio que as boas almas da Generalitat catalã a condenaram à infelicidade.

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