Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, outubro 12, 2007

Livro:Lula É Minha Anta por Diogo Mainardi

O oráculo de Ipanema

Uma breve história de Diogo Mainardi, o colunista mais lido
de VEJA, autor de Lula É Minha Anta, que reúne seus textos
sobre o período mais espantoso da democracia brasileira


Mario Sabino

Oscar Cabral
Diogo, em Ipanema: "Fala a verdade, professora, vocês, comunistas, gostam mesmo é do charutão de Fidel Castro"

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Trecho do livro

Diogo Mainardi usa a primeira pessoa para falar do mundo. Eu usarei a primeira pessoa para falar dele. Conheço o Diogo há trinta anos, desde os tempos do colegial no Equipe, em São Paulo. Na década de 70, o Equipe era uma escola que abrigava filhos de intelectuais perseguidos pelo regime militar, de profissionais liberais com pensamento mais alinhado à esquerda e de ricos, simplesmente. Só havia uma aluna negra. Depois dela, o Diogo era o mais escurinho. A cota do Equipe. Estudamos com futuros músicos de rock (Titãs), futuros pintores (Casa 7), futuros cineastas (Cao Hamburger é um entre mais de 300) e nenhum futuro Prêmio Nobel de Medicina, Física ou Química. A moçada gostava mesmo era de fazer arte, digamos assim. Inclusive nós, da futura "mídia golpista". O Diogo e eu tínhamos 15 anos, embora ele acrescentasse mais unzinho à sua idade, naquela que foi a sua primeira obra de ficção. O Diogo do Equipe era uma antecipação do Diogo atual, autor de Lula É Minha Anta (editora Record; 238 páginas; 35 reais), coletânea de textos publicados em VEJA. Os alunos do Equipe usavam andrajos ripongos. O Diogo usava calças Fiorucci. Os alunos do Equipe viajavam de ônibus para pegar praia no Ceará. O Diogo viajava de avião para esquiar no Chile. Os alunos do Equipe não tomavam banho com regularidade. O Diogo tomava dois por dia. Muitos alunos do Equipe iam de motorista para a escola. O Diogo ia de ônibus (e com um Rolex no pulso, sem que isso fosse visto como uma demonstração perversa da elite a favor da desigualdade de renda). Os alunos do Equipe ouviam Caetano Veloso e Luiz Melodia. O Diogo ouvia Talking Heads e Devo. Os alunos do Equipe gostavam de meninas com pernas cabeludas. O Diogo gostava de meninas com pernas depiladas (e eu também).

Além da fumaça de baseados, respirava-se política no Equipe. Os professores de história eram todos ligados ao Partido Comunista Brasileiro e adjacências. À diferença dos doutrinadores de hoje, eles sabiam história e nos divertiam ao ridicularizar as versões "burguesas". Havia uma professora de história do Brasil da qual sonhávamos socializar o modo de reprodução. Nas suas aulas, saíamos lá do fundão, para sentar perto daquela visão do paraíso (não no sentido do Sérgio Buarque de Holanda). Pois um dia, ao final de uma aula virulenta contra o capitalismo, o Diogo pediu a palavra à filocubana e disse, naquele tom plácido que é uma de suas marcas: "Fala a verdade, professora, vocês, comunistas, gostam mesmo é do charutão do Fidel Castro". Não houve retaliação. A esquerda brasileira era bem mais tolerante naqueles anos.

O Diogo pertencia a outro PC: o "Porcos Chauvinistas". Esse era o nome da nossa turma politicamente incorreta (o termo não existia), que fazia um jornalzinho de periodicidade irregular como o mensalão petista, o "Corriere del PC". O título, inventado pelo Diogo, era uma gozação para cima dos comunistas italianos, naquele período histórico empenhados em engabelar o público com um troço chamado "eurocomunismo" ou "terceira via". A forma e o conteúdo do nosso "Corriere" eram menos pretensiosos. Numa folha de caderno manuscrita, circulávamos piadas sobre os professores e elegíamos misses entre as meninas da classe mais dotadas de certos atributos (nunca inteligência). Em todo número, colávamos a mesma fotografia 3 por 4 de um integrante feioso do "PC", com a seguinte legenda: "Procura-se estuprador de galinhas". O resto da classe achava isso um "absurdo", a palavra mais em voga no Equipe da década de 70.

AOS 16 ANOS, DO LADO DE GUSHIKEN
Em 1979, Diogo Mainardi estava no centro de São Paulo, quando foi colhido por um quebra-quebra promovido pelo Sindicato dos Bancários. Tentou fugir, mas levou uma cacetada de um policial. Furioso, aderiu à turba. O fotógrafo Pedro Martinelli, pensando se tratar de um manifestante, o flagrou enquanto quebrava a vidraça de um banco. Uma das fotos foi publicada em VEJA. A seqüência completa das imagens está reproduzida pela primeira vez nestas páginas

Uma de nossas atividades curriculares preferidas era jogar sinuca nos fundos de um boteco próximo ao colégio. Foi o cenário da defesa de minoria mais contundente que presenciei. O Diogo, que tinha aulas particulares de caratê em casa (pois é), pegou pelo colarinho um tipo que ameaçava dar uns cascudos num professor gay (de química). "Se você fizer isso, eu quebro a sua cara, está escutando?", disse o Diogo, num tom nada plácido, reconheço. O ameaçado ficou tão assustado quanto surpreso: como é que o Diogo, logo ele, capitão do "PC", podia defender um homossexual? Essa é a diferença entre o Garrincha e o Diogo, para ficar numa metáfora típica do momento político. Em seus dribles, o Garrincha fazia toda sorte de firula, mas sempre saía pela direita. O Diogo às vezes pode sair pela esquerda. A pretexto de aperfeiçoar o inglês, ele foi fazer o último ano do colegial numa high school pública da Califórnia. Os americanos estavam histéricos com o Irã dos aiatolás. Dali a pouco, a embaixada dos Estados Unidos em Teerã seria invadida e dezenas de funcionários mantidos reféns. O que fez o Diogo na high school? Pôs-se a defender a revolução iraniana e a atacar o xá deposto Reza Pahlevi (tio, aliás, da namorada do seu irmão mais velho). Para espanto do professor de American Studies – o equivalente à antiga educação moral e cívica brasileira –, ele contava em sala de aula como a CIA havia apoiado o regime corrupto do xá e, na América Latina, dado suporte ao golpe no Chile. O professor foi pesquisar nos jornais e – Oh, my Gosh! – confirmou tudo.

O colunista mais lido de VEJA apareceu pela primeira vez nas páginas da revista na edição de 19 de setembro de 1979. Foi na condição de "desordeiro", veja só que ironia. Uma foto estampada na página 17 mostra o Diogo, às vésperas de completar 17 anos, quebrando a vidraça da agência de um grande banco, em São Paulo. Recém-chegado dos Estados Unidos, ele estava no centro da cidade para renovar a carteira de identidade, quando foi colhido por uma manifestação do sindicato dos bancários logo degenerada em quebra-quebra. O Diogo tentou sair dali, mas um policial lhe deu uma cacetada. Furioso, ele se juntou à turba – e foi flagrado pelo fotógrafo Pedro Martinelli, de VEJA, que, é claro, pensou ser o garotão um bancário ou office-boy, apesar das botas italianas e do Rolex. A seqüência completa das imagens do "desordeiro" pode ser vista nestas páginas. Do episódio, conclui-se que, pelo menos uma vez, o Diogo esteve alinhado ao petista Luiz Gushiken, então um dos chefes dos bancários paulistas e personagem de Lula É Minha Anta.

Em 1980, o Diogo passou no vestibular para a faculdade de economia da PUC. Cursou só um ano. Nessa ocasião, mudou-se para uma quitinete no centro de São Paulo. O lugar era meio sórdido. Numa das paredes do apartamento, acima da cama permanentemente desarrumada, ele pichou a frase "De omnibus dubitandum est" ("Duvide de tudo"), mote latino que guiava o francês René Descartes. Troque-se o "tudo" por "políticos" e eis o cerne do pensamento mainardiano. Por isso acho engraçado quando ouço um político falar que é "amigo do Diogo". O Diogo não tem amigos políticos. Hoje bate nos petistas como amanhã espancará os tucanos, caso o PSDB volte ao Planalto. "Encaro como um serviço de utilidade pública", diz ele. O filme Tropa de Elite aponta o dedo contra os usuários de drogas? O Diogo já fazia isso no começo dos anos 80. Convidado para uma festa de publicitários e modelos, em que cocaína era servida feito canapé, ele pegou um punhado de pó, subiu numa mesa e interrompeu a festa com um discurso. Acusou os presentes – e olhe que era gente para burro – de financiarem o golpe de estado que o general Luis García Meza havia acabado de dar na Bolívia, com a ajuda dos cartéis da coca. Capitão Diogo Nascimento.

Cansado do Brasil brasileiro, mudou-se para Londres, matriculado na London School of Economics. A princípio, ficou maravilhado com a biblioteca de vários andares da escola. Mas, antes de completar um ano nessa faculdade tão conceituada quanto cara, elegeu como tutor Ivan Lessa, uma referência para sempre. Lessa indicou-lhe pencas de livros de ficção para ler – do irlandês Flann O'Brien ao americano Terry Southern. Resultado: o Diogo passou a matar aulas em libras esterlinas. Fui encontrar o meu amigo em Londres. Ele alugava um quarto na casa de um encanador e, quando não estava lendo a bibliografia passada pelo tutor Lessa, andava horas pela cidade, ensimesmado. Sua dieta era à base de goulash, fish-and-chips e scotch egg – um ovo cozido revestido de uma capa de farinha frita. Não sei como o Diogo sobreviveu a esse tipo de comida. De qualquer forma, tendo a crer que a culinária da velha Albion ajudou a forjar o notável estilo sem molhos do autor de quatro romances, dois roteiros cinematográficos e duas coletâneas de artigos publicados em VEJA, A Tapas e Pontapés e, agora, Lula É Minha Anta.

A história mais recente do Diogo é razoavelmente conhecida. Serviu de cicerone a Gore Vidal na visita do escritor americano ao país (o que pouca gente sabe é que Vidal aconselhou Diogo a entrar na carreira política e tentar a Presidência do Brasil). Era amigo de Paulo Francis e é chapa de Millôr Fernandes – os dois, mais Ivan Lessa, estão em fotografias penduradas na sala de jantar do Diogo. Viveu durante catorze anos em Veneza, onde se casou com Anna Michielotto, especialista na pintura de Tintoretto, e teve seu primeiro filho, Tito, que nasceu com paralisia cerebral. Há seis anos, escolheu o Rio de Janeiro para morar, porque a cidade oferecia melhores condições do que Veneza para o desenvolvimento de Tito, uma das crianças mais bem-humoradas que conheço. No Rio, nasceu o seu segundo filho, Nico, um garoto muito "ishperrto", na avaliação geral dos vizinhos ipanemenses. Desde 2003, o Diogo faz parte da bancada do programa Manhattan Connection, do canal GNT. Grava apenas com áudio, sem ver os seus interlocutores em Nova York, o que acentua a sua tendência de olhar para baixo quando está diante de uma câmera.

O Diogo é amigo de infância do dono do grupo Fasano, Rogério. Isso lhe garante mesa cativa nos restaurantes e um preço camarada nas contas. É um negocião, principalmente porque o veneziano Tito adora comer bem. A família toda vai para a cama cedo, por volta de 9 e meia da noite. O Diogo já está de pé às 5 e meia da manhã. Lê jornais nacionais, americanos e italianos na internet, e a rede lhe propicia também levantar informações sobre os personagens citados em suas colunas e no podcast que faz para VEJA on-line. Ele mora na Avenida Vieira Souto, no 3º andar de um predinho que nada tem de elegante ou luxuoso, mas ainda mantém o belíssimo apartamento no Canal Grande, em Veneza, num edifício do século XV, com janelas bizantinas, ao lado do Museu Guggenheim. O aluguel da maravilha é relativamente barato porque o dono é amicíssimo de Anna.

Lula É Minha Anta reúne colunas publicadas entre março de 2005 e setembro deste ano. É a história do mensalão vista pela ótica do Diogo. Como sabem os admiradores que acompanham seu trabalho, ele também participou das apurações de alguns episódios, contribuindo com entrevistas e dicas preciosas. No livro, o Diogo encadeia as colunas por meio de comentários em negrito que não deixam o leitor se perder em meio à torrente de acontecimentos. É, no todo, uma ótima crônica sobre a quadra mais espantosa da democracia brasileira. Visitei bastante o Diogo nesse período. Tardes e tardes de sábado na sala do seu apartamento – eu no sofá desconfortável de frente para o janelão que emoldura o mar do Posto 9; ele no divã igualmente desconfortável de costas para o janelão (vou acabar comprando uns móveis decentes para os Mainardi). Com as crianças brincando no quarto, a televisão ligada baixo em algum programa ruim da RAI, ficávamos naquele silêncio modorrento só possível entre amigos. Uma vez o Diogo caiu na risada. "Por que você está rindo?", perguntei. "É porque estou fora do radar petista. Enquanto eles gostam de dinheiro e poder, eu gosto mesmo é de dormir", respondeu o oráculo de Ipanema.

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