Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, outubro 17, 2007

Legitimando um ditador


editorial
O Estado de S. Paulo
17/10/2007

Maior país “africano” fora da África, o Brasil tem um inquestionável imperativo histórico em relação ao continente próximo. Consiste em recorrer, como política de Estado, ao decantado e diversificado rol de afinidades e à imensa simpatia que as suas populações nutrem pelos brasileiros para dar uma contribuição substantiva ao desenvolvimento da democracia e ao progresso econômico-social africanos. Não é tarefa simples, decerto. A cultura autoritária é antes a regra do que a exceção na escarpada topografia política gerada pela criminosa colonização européia, que pouco evoluiu, para melhor, depois da independência, entre outros motivos devido ao apoio dado pelo Ocidente a regimes autocráticos os mais diversos. Neles, a brutalidade com que seus ditadores ascendem e se mantêm no poder só não é maior do que a corrupção a que eles e suas claques se dedicam, sangrando desapiedadamente os seus infelizes súditos.

Contra esse pano de fundo é que cabe situar a viagem desta semana do presidente Lula a quatro países africanos, dos quais, a rigor, apenas um - a África do Sul onde estará hoje - merece ser visto como uma democracia política testada e aprovada. Examine-se o exemplo de Burkina Faso, primeira escala de mais esta excursão presidencial. O militar Blaise Compaoré manda no país desde 1987, quando derrubou do governo e executou o presidente esquerdista Thomas Sankara. Depois, se fez vitorioso em três eleições realizadas sob o signo da intimidação e da fraude escancaradas que invariavelmente lhe davam cerca de 80% dos votos. Como outras democracias fictícias, o regime de Compaoré tem lugar para uma imprensa não oficialesca, mas cuja independência depende dos humores do ditador, e para uma oposição cujas chances de substitui-lo nas urnas são nulas.

Não para o assessor internacional do Planalto, professor Marco Aurélio Garcia, que teve a gentileza de informar aos jornalistas que acompanham Lula, que o governo brasileiro considera Burkina Faso uma democracia. “O presidente tem se subordinado a eleições livres, fiscalizadas internacionalmente”, observou. E completou, do alto de seus conhecimentos: “Pelo que sabemos.” Se assim é, por que o seu chefe resolveu fazer, logo ali, um pronunciamento em louvor ao sistema democrático? Por que criticou, em dado momento, o “exercício abusivo do poder”? Mas o que fez troça dessa pregação das virtudes da democracia foi o fato de Lula estar ali como convidado de honra de uma festa oficial promovida pelo autocrata Compaoré - pelos 20 anos do sangrento golpe que o instalou no palácio presidencial de Uagadugu (ou Uagadougou, na grafia original dos colonizadores franceses). Francês, naturalmente, foi também o champanhe oferecido à comitiva brasileira na celebração do que o duplipensar compaorenês houve por bem denominar “renascimento democrático” de Burkina Faso.

É desalentador ver o presidente Lula colocar o seu grande prestígio pessoal e o afeto dos africanos pelo Brasil a serviço do ditador daquele miserável país. Só uma abissal ignorância da África, dos seus governos e seus povos permitiria imaginar que a passagem de Lula por Uagadugu e as suas palavras e os sete protocolos assinados possam ter servido para avançar um milímetro a causa da democracia na África ou para reduzir a miséria da população de Burkina Faso. Ao contrário: as cenas em que o brasileiro aparece ao lado do anfitrião autocrático servirão, isso sim, para legitimar mais um ditador nessa região do mundo em que são tão freqüentes. O resto foi uma inútil retórica de glorificação da paz. Inútil e constrangedora: “Se ao invés (sic) de comprarmos pão, tivermos que comprar canhão; se ao invés de comprarmos arroz, tivermos que comprar fuzis; e, se ao invés de abraçar um companheiro, tivermos que atirar nele, certamente esse país nunca irá se desenvolver.”(E aqui Lula cometeu uma gafe, talvez proposital, uma vez que seu anfitrião teve que atirar num “companheiro” para chegar ao poder.)

Desenvolvimento? Democracia? Burkina Faso tem 13 milhões de habitantes, dos quais cerca de 10 milhões são analfabetos. O palácio de Compaoré tem, na entrada, dois cavalos de bronze em tamanho natural e um chafariz em forma de globo. No salão principal, grandes lustres de cristal e, por cima, um lampadário que muda constantemente de cor. Ali, facínoras como Jean-Bédel Bokassa e Idi Amin Dada se sentiriam em casa.

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