Médicos ressuscitam a hipotermia, a técnica de
resfriar o corpo para preservar as funções vitais
Anna Paula Buchalla
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Uma técnica antiga, mas só há pouco reabilitada pela medicina, está conseguindo trazer de volta à vida, sem seqüelas neurológicas, vítimas de parada cardíaca que teriam pouca ou nenhuma chance de sobrevivência. É a hipotermia terapêutica – a mesma conduta que, há 22 anos, os médicos utilizaram como último recurso para tentar salvar o presidente Tancredo Neves. Embora a medicina disponha de um vasto arsenal para ressuscitar quem sofre uma parada cardíaca, muitas vidas ainda são perdidas. Uma em cada quatro vítimas não recobra a consciência e morre em poucos dias. Cerca de 30% sobrevivem, com seqüelas. O princípio da hipotermia é simples: reduzir a temperatura do corpo como forma de congelar o dano causado pela falta de oxigênio. Quando o coração pára de bater, uma série de abalos sucede no organismo – do stress oxidativo à morte celular, passando pela liberação de toxinas que podem iniciar um processo infeccioso mais sério. Deixada a seu próprio curso, essa cadeia de problemas leva à morte cerebral. Com o resfriamento, a taxa de sobrevivência aumenta 35%, em média. Em alguns centros mais avançados provou-se, inclusive, ser possível triplicar as chances de sobrevivência, sem seqüelas neurológicas, de um paciente vítima de parada cardíaca.
Utilizada há cerca de sessenta anos, só há dois a hipotermia terapêutica entrou para as diretrizes da Associação Americana do Coração como procedimento-padrão de ressuscitação. O uso da técnica nos atendimentos de urgência foi abandonado porque, por falta de conhecimento, os médicos baixavam demais a temperatura corporal dos pacientes, a ponto de colocar a sua vida em risco. Durante as últimas décadas, o resfriamento ficou restrito às salas de operação, em cirurgias que requerem a interrupção do fluxo sanguíneo ou a circulação extracorpórea, como nas intervenções cardíacas. A hipotermia só voltou às salas de emergência com a descoberta de um número mágico: 32 graus. Essa é a temperatura interna mínima que o organismo suporta. Nesse patamar, é possível preservar as células dos danos decorrentes da falta de oxigênio. "Além de salvar vidas, o objetivo da hipotermia é trazer o paciente de volta de uma parada cardíaca exatamente como ele era antes de sofrer o problema", diz o cardiologista Sergio Timerman, do Instituto do Coração, de São Paulo.
A hipotermia terapêutica vem sendo testada também para o tratamento de lesões na coluna cervical. Baixar a temperatura do paciente reduz o edema e a inflamação na área danificada da coluna. A medida limita a ação de substâncias tóxicas, como os radicais livres, que tendem a aumentar a extensão do dano. No início de setembro, o jogador de futebol americano Kevin Everett, do Buffalo Bills, sofreu um acidente em campo. Ele fraturou a terceira e a quarta vértebras da coluna cervical no choque com um adversário. Logo depois de ter sido ferido, ainda dentro da ambulância, Everett recebeu uma injeção de uma solução salina gelada que lhe resfriou o organismo. Graças a esse procedimento, apesar da lesão gravíssima na coluna, Everett deve voltar a andar em breve. O resfriamento está sendo aplicado em fase experimental no atendimento de pacientes de infarto e derrame. No primeiro caso, a idéia é proteger o próprio músculo cardíaco de possíveis comprometimentos causados pela falta de sangue e oxigênio. No derrame, como a hipotermia evita a morte das células cerebrais, acredita-se que ela diminuiria os riscos de seqüelas. Há ainda estudos sobre o uso da técnica em recém-nascidos que sofreram falta de oxigenação durante o parto e em vítimas de esclerose múltipla.
"RESULTADOS QUASE MIRACULOSOS"
O cardiologista Karl B. Kern, professor da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, dirige um dos centros mais bem equipados para atender vítimas de parada cardíaca. Ele defende uma ação agressiva para salvar esses pacientes, à qual chama de ressuscitação cardiocerebral e que inclui a hipotermia. Kern deu a seguinte entrevista a VEJA: | Fabiano Accorsi |
EM QUE A RESSUSCITAÇÃO CARDIOCEREBRAL DIFERE DA PRÁTICA TRADICIONAL?
Ela é mais simples e não envolve a respiração boca a boca. Basta fazer as massagens de compressão no peito do paciente enquanto se espera a emergência. Isso aumenta muito as chances de sobrevivência, ao manter o sangue circulando no organismo. Os resultados, por incrível que pareça, são melhores. Consideramos o boca-a-boca desnecessário no caso dos adultos. O mesmo não vale para as crianças, em que a técnica ainda é fundamental para salvar vidas. No caso delas, a ventilação é essencial porque o seu corpo precisa de mais oxigênio. Depois de fazer o coração voltar a bater, defendo uma pós-ressuscitação agressiva, que inclui a hipotermia e até um exame de imagem das coronárias para saber se é necessária a desobstrução de uma ou mais artérias bloqueadas.
EM QUE SITUAÇÕES ESPECÍFICAS ESSA INTERVENÇÃO DEVE SER APLICADA?
De preferência em vítimas de parada cardíaca que se mantêm inconscientes mesmo depois de o coração voltar a bater. Vou dar o exemplo de um paciente meu, um nadador de competição de 40 anos. No fim de um dos treinos, ele dirigiu-se ao chuveiro e, lá, teve um colapso. Por sorte, foi atendido por um bombeiro treinado em nosso protocolo de ressuscitação. Quando os paramédicos chegaram, ele tinha pulso, mas estava em coma. Imediatamente, foi submetido à hipotermia. Seu cérebro foi totalmente preservado de qualquer dano. Em 24 horas, ele estava completamente normal.
SÃO POUCOS OS HOSPITAIS QUE DISPÕEM DE EQUIPAMENTOS PARA A APLICAÇÃO DA TÉCNICA DE HIPOTERMIA. ESSE INVESTIMENTO VALE A PENA?
Claro que sim. Embora ainda não conheçamos a fundo as causas dos benefícios da redução da temperatura, sabemos que ela dá aos tecidos e órgãos do corpo uma chance infinitamente melhor de se recuperar. Posso garantir que temos visto resultados incríveis, quase miraculosos.
Fotos: divulgação |