Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 21, 2007

Entrevista da Folha:Ruth Cardoso

Falta de controle prejudica ONG, diz Ruth

Para ex-primeira-dama, "pouco cuidado" na elaboração de convênios com organizações não-governamentais é causa de fraudes

Ausência de avaliação e de metas, afirma antropóloga, abre brecha para corrupção no terceiro setor, formado por entidades boas e ruins

CATIA SEABRA
DA REPORTAGEM LOCAL

Em tempos de denúncias contra organizações não-governamentais, a antropóloga Ruth Cardoso decidiu "militar" em defesa da parceria entre governo e sociedade civil. Para ela, os recentes escândalos "respingam" na credibilidade do terceiro setor, composto por organizações boas e ruins.
Uma das principais incentivadoras dessa aliança com o terceiro setor, à frente do Comunidade Solidária, a ex-primeira-dama aponta o "pouco cuidado" na elaboração dos convênios como causa de fraudes. Segundo ela, a falta de avaliação de resultados e de competição para seleção de contratadas abre brecha para corrupção. Leia os principais trechos da entrevista concedida à Folha.

FOLHA - O que a senhora acha da CPI das ONGs?
RUTH CARDOSO
- Só não gosto do nome. Devia ser a CPI das contratantes das ONGs. CPI das ONGs coloca em dúvida um setor inteiro.

FOLHA - Por que CPI de Contratante? A senhora acha que a irregularidade está...
RUTH
- Quando você contrata sem exigir metas, sem definir tarefas e sem avaliar resultados, está criando uma condição na qual algumas vão se aproveitar dessa situação. Mas tem um problema que é da raiz dessa questão. As ONGs, quando começaram a se desenvolver aqui no Brasil, eram a salvação do país. Eram puras, dedicadas só ao bem. Uma visão muito positiva, quase ingênua. As ONGs, como são representantes da sociedade, refletem todas as posições. Não há posição certa na sociedade, existem grupos que defendem várias. A única posição que não é certa é a da intolerância.

FOLHA - Há intolerância, uma demonização das ONGs?
RUTH
- Estamos passando para outro extremo. Como houve uma série de constatações e denúncias de desvio de dinheiro, as ONGs passaram a ser um conjunto diabolizado. Você pega um setor inteiro e confunde com algumas ONGs que, pelo que se sabe, têm, realmente, problemas no uso dos recursos públicos e privados. Busco uma visão mais objetiva. Nem tão puras. Nem tão ruins.

FOLHA - O que é mais delicado nos convênios hoje?
RUTH
- São inúmeras as normas de convênios. Agora, realmente, todos estão baseados sempre na idéia de que você tem um certo estilo de prestação de conta, que não leva em conta o resultado. Não há avaliação de resultado.

FOLHA - O terceiro setor chega a receber R$ 1 bilhão por ano do governo. A senhora não acha temerário que assuma o papel do Estado, como na saúde indígena?
RUTH
- Primeiro: por que é papel do Estado? E segundo: por que essa desconfiança? Vamos pegar a saúde indígena. A Fundação Nacional, que cuidava da saúde indígena, não tem recursos nem capacidade de dar conta de todo problema indígena, que é complicado no Brasil. Aí, você tem gente que trabalha bem, como tem convênios que não são tão bem cumpridos.
Vou falar mal das ONGs ou vou falar mal do convênio, que deixou uma brecha para não ser cumprido tal como deveria?

FOLHA - A senhora não acha que escândalos recentes, como em SC ou do Silvio Pereira (ex-secretário-geral do PT), acabaram afetando a credibilidade das ONGs?
RUTH
- Respinga, sim. Mas posso garantir que deve ter cem vezes mais ONGs que estão lá fazendo seu trabalhinho direito, aliás, com muita dificuldade de arranjar verba, isso sim. Mas isso é o resultado desse pouco cuidado na hora de definir o que é uma parceria com uma ONG e da pouca exigência. Se alguém cria uma ONG e consegue um contrato milionário no dia seguinte é uma coisa estranha, é uma falta de critério. Veja a Pastoral da dona Zilda, a Pastoral da Criança. Faz um trabalho cujo resultado é público e notório. É uma ONG. Mas a gente esquece que existe a dona Zilda. Acaba olhando para o Silvio Pereira.

FOLHA - Mas a senhora concorda que está pesando contra a imagem?
RUTH
- Está pesando, estou tentando discutir exatamente isso. Como é que a gente está generalizando e jogando fora a criança com a água do banho. São inúmeras as contribuições.

FOLHA - Esse "pouco cuidado" já existia no governo passado ou cresceu agora?
RUTH
- Certamente, não existia. Também não posso garantir que, no governo passado, não tivesse havido alguma falcatrua, porque essas coisas são um pouco incontroláveis, mas controles havia. O tipo de critério, de distribuição de recursos, era bastante mais discutido. Os montantes não eram tão grandes, mas é porque havia uma preocupação. Pelo menos no Comunidade Solidária. Não quer dizer que isso tenha, realmente feito escola em todo o governo. Mas havia uma idéia de que a parceria com a sociedade é uma coisa positiva. Então, acho que posso garantir que havia uma preocupação com critérios mais distintos.

FOLHA - A falta de cuidado acaba alimentando esses escândalos?
RUTH
- Só uma situação, na qual você não tem critérios de avaliação de resultados, é que pode alimentar essa situação.

FOLHA - É chato assistir a essa demonização?
RUTH
- É claro que acho desagradável. Estamos dando um passo atrás. A gente caminhou no sentido de uma sociedade mais democrática, de maior participação da sociedade civil.
E, de repente, a gente fechou um pouco essas portas e, outra vez, temos domínio de uma visão estatística. Porque isso tudo é resultado dessa visão, de que é o Estado que tem que fazer e que daí o Estado manda. Não há debates, critérios estabelecidos em conjunto. Então, acho triste para o país, sim.

FOLHA - Recentemente, surgiu notícia de que a CGU tinha feito uma devassa no alfabetização solidária (de que é sócia-fundadora). A constatação é de que teria cumprido apenas 10% da meta...
RUTH
- Só lamento que você tenha lido essa notícia e não tenha lido, na semana seguinte, a resposta. Fizemos 10% a mais do que as metas.

FOLHA - Li. Mas a senhora acha que houve uma represália do governo?
RUTH
- Não posso atribuir intenções. Estamos num jogo político aí que quem inventou e por que, não sei. Só que tem uma inverdade complicada.
Não houve devassa, porque foi uma corregedoria fazendo auditoria. Segundo, não são as ONGs da dona Ruth. Dentro dessa minha visão do que é o terceiro setor, tudo o que eu criei na Comunidade Solidária, todos os meus programas têm parceria público-privado. Fiz tudo ao contrário do que se faz.
Mas continuo sendo acusada de fazer uma LBA. As ONGs têm autonomia. Mas comentam: as ONGs da dona Ruth.

MEMÓRIA:

EX-PRIMEIRA-DAMA LANÇOU O PROGRAMA ALFABETIZAÇÃO SOLIDÁRIA
Lançado em dezembro de 1996 pela então primeira-dama Ruth Cardoso, o programa Alfabetização Solidária começou a ser implantado em 38 municípios do Norte e Nordeste, nos quais educou 9.000 adultos. O programa atendeu, até o final de 2002, cerca de 3 milhões de alunos. Em 2003, o governo Lula lançou o programa Brasil Alfabetizado, que atendeu, até o final de 2006, cerca de 7,3 milhões de pessoas.
Antropóloga elogia "Tropa de Elite" e critica pirataria

Ruth diz que país melhorou e não opina sobre Serra

DA REPORTAGEM LOCAL

Embora elogie "Tropa de Elite", a ex-primeira-dama não gostou da ONG retratada no filme, sobretudo da foto do político na parede. Para Ruth Cardoso, o país melhorou, apesar de um retrocesso nos programas sociais. Ela não quis opinar sobre o governo Serra. (CS)

FOLHA - Viu "Tropa de Elite?"
RUTH
- Vi.

FOLHA - No cinema ou na...
RUTH
- Não, vi no cinema e briguei com todo mundo que viu na cópia pirata. Você viu na cópia pirata?

FOLHA - No cinema. Há uma ONG no filme. E a imagem não é boa.
RUTH
- Esse filme tem uma grande virtude: colocar essa discussão do consumidor e da alimentação do sistema da droga. E essa é uma discussão muito difícil no Brasil. Nunca se pode falar disso, porque é uma limitação da liberdade. O modo pelo qual ele colocou a ONG me deixou um pouquinho frustrada, porque ele não mostra se aquela ONG fez alguma coisa que tivesse significado.

FOLHA - Havia uns óculos ali...
RUTH
- Tinha uma coisa, por exemplo, que me desagradou muito e que não é o comum das ONGs. Tinha a fotografia de um candidato. Para uma ONG poder trabalhar, não pode ter uma definição política tão clara. Então, é difícil. Mas deve ter um exemplo parecido. Existe tudo nesse mundo das ONGs.

FOLHA - A senhora já defendeu a discriminalização da maconha...
RUTH
- Essa discussão já nem adianta mais. Sou a favor da discriminalização, mas acho inviável. É melhor nos preocuparmos com a realidade que existe, o que a gente pode melhorar tal como está. Esse filme colabora para isso.

FOLHA - Acha o filme fascista?
RUTH
- Não. Ao contrário. Acho que coloca questões muito importantes em debate. Um filme corajoso e não vejo nada de fascista. Disseram que o capitão vira um herói. Bom, se aquilo é herói, francamente, não? O cara bate na mulher, o cara é um horror. Aparece como humano. Graças a Deus, porque senão seria uma caricatura.

FOLHA - A senhora disse há pouco que houve melhoria no país...
RUTH
- Não. Falei, assim, em geral, que houve avanço? Estava pensando no SUS, que, apesar dos seus defeitos, tem caminhado e os resultados estatísticos me mostram que melhorou. O Brasil melhorou. Isso que eu quis dizer, não necessariamente que programas estão melhores ou estão piores, inclusive, porque a gente não tem nem muita medida. Agora, houve um retrocesso na concepção dos programas, que ficaram muito mais estatistas.

FOLHA - O que a senhora achou da unificação dos programas?
RUTH
- Não é uma novidade. Teríamos que chegar nisso. Foi um pouco prematuro. Os cadastros não estavam suficientemente avaliados. Juntou tudo, o que criou maiores problemas para administração. Juntou tudo e ampliou muito o programa. O mais grave é que diminuíram as condições para receber as bolsas. Outro defeito sério: não tem limite, não tem uma meta para chegar.

FOLHA - O aporte maior de recursos para o Bolsa Família virou instrumento de comparação do governo Lula com o de FHC. O PSDB tinha vergonha de lançar mão de um programa de transferência de renda?
RUTH
- Pois é. Não prestaram atenção. Era a semente de uma coisa feita de maneira diferente. Tanto que servimos de exemplo para outros países onde estão muito bem planejados.

FOLHA - Não prestaram atenção quando a senhora defendia mais recursos?
RUTH
- A gente não achava que tinha que ter mais recursos. Esse negócio de distribuição de renda que vale pela quantidade é muito complicado. Você não pode fazer programa com inúmeras famílias.

FOLHA - O PSDB perdeu a bandeira desses programas?
RUTH
- Espero que não. Porque esse programa de bolsas começou em Campinas com o prefeito Grama, José Roberto Magalhães. Depois, foi para o Distrito Federal com o Cristovam (Buarque). Nesse trajeto, acho que a bandeira é do PSDB.

FOLHA - Há uma deficiência do PSDB?
RUTH
- O PSDB tem dificuldade em geral de se comunicar bem. Não é o forte do partido.

FOLHA - Sobre privatizações, o que a senhora achou da campanha do partido?
RUTH
- O PSDB não quis assumir a bandeira, e o resultado não foi bom.

FOLHA - Como vê a relação de José Serra com o meio acadêmico?
RUTH
- Teve um triste começo, complicado, desnecessariamente agressivo, mas acho que o Serra está conseguindo recompor essa relação.

Ruth Cardoso ri de declaração de Lula sobre FHC

DA REPORTAGEM LOCAL

Sempre avessa ao título de primeira-dama, Ruth Cardoso riu ao ouvir a declaração do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) de que o antecessor, Fernando Henrique Cardoso (PSDB), não se comportava como um bom ex-presidente. Segundo Lula, FHC dá palpites de mais no governo.
Dona Ruth não quis comentar. "Aí, eu só posso concordar com o marido." Hoje à frente da Comunitas - uma Oscip (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público) encarregada de dar continuidade aos programas do Comunidade Solidária - Ruth Cardoso também riu quando questionada sobre qual seria o candidato à prefeitura de São Paulo. "Nem pensei nisso. Juro."
Ela evitou opinar sobre continuidade da aliança entre PSDB e DEM. "Não faço política partidária", disse.
E defendeu a decisão do governo de oficializar, em publicação, os crimes cometidos durante a ditadura militar: "A reação contra isso é como se quisesse abafar".
Para ela, que deixou o país durante o regime, não dá para esquecer. "Essa memória tem que existir. Depende de como a gente pretende mexer nisso. Esquecer não se pode. Não é algo que a gente pode esquecer, a gente tem sempre que apresentar como uma violência contra a democracia", afirmou. (CS)

Dona Ruth ou "No país da civilidade perdida"

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