O mito é uma narrativa isenta das máculas da história. Os biógrafos de Che investigaram o homem que existe atrás do mito - e desvendaram uma figura destituída de empatia humana, um dogmático rude e um fanático incorrigível, que declarou certa vez: "Não posso ser amigo de ninguém que não compartilhe minhas idéias." Nos cinco meses de 1959 em que comandou a prisão de La Cabaña, Che supervisionou centenas de execuções sumárias, baseadas em meras afirmações dos oficiais de acusação, e justificou esses procedimentos pela proclamação: "Isto é uma revolução, as provas são secundárias." Nada disso arranhou o mito ou amenizou o culto à imagem eternizada na célebre fotografia de Alberto Korda, que adorna pôsteres, camisetas e até o biquíni de uma modelo.
Che fracassou como líder revolucionário, não uma, mas duas vezes, e não porque a realidade lhe pregasse peças imprevisíveis, mas unicamente em razão de sua incapacidade de separá-la das fantasias erigidas por seu dogmatismo. No Congo, envolveu-se com as forças de Laurent-Désiré Kabila, o senhor da guerra que tomou inicialmente por chefe de uma revolução. Na Bolívia, um país com tradições revolucionárias ligadas aos operários das minas de estanho, imaginou deflagrar um "novo Vietnã" por meio de sua guerrilha na selva. Mas o mito resiste a tudo isso, pois seu núcleo emotivo se organiza em torno da idéia de martírio.
Na narrativa mítica, Che emerge como exemplo de revolucionário humanista e profeta do hombre nuevo, ao qual dedicou um ensaio, escrito em 1965. Na mesma época, em sua passagem como ministro da Indústria de Cuba, ele evidenciou, talvez mais ainda que nas aventuras no Congo e na Bolívia, um arrogante desprezo pelas expectativas das pessoas comuns, advogando a militarização da economia e das relações de trabalho. A estatização até mesmo de pequenas lojas e propriedades rurais familiares é a herança desastrosa que deixou para os cubanos. Esse fardo é amenizado apenas pelo "sociolismo", termo local para o peculiar sistema de favores recíprocos e pequenos furtos cotidianos que propicia acesso a bens indispensáveis, cuja irradiação não seria possível sem o voluntário "desaparecimento" de Che.
O hombre nuevo de Che era a sua própria imagem refletida no espelho: o revolucionário inflexível, movido unicamente pelo imperativo moral, imune a incentivos materiais. Pol Pot, o sanguinário ditador do Camboja, massacrou entre 1 milhão e 2 milhões de compatriotas no curso de uma campanha para a criação do "homem novo". Che, para sorte dos cubanos, não teve a oportunidade de pôr em prática as suas idéias "humanistas". Contudo, persistentemente, o mito sobrevive intacto à história. Mesmo Jorge G. Castañeda, autor de uma lúcida e rigorosa biografia do guerrilheiro, pendura uma frase laudatória na qual aponta Che como a personificação do "mais profundo significado" do "fervente idealismo" da geração de 1968 - algo que colide com cada linha de sua obra.
Um mito não é uma mentira, mas uma narrativa que condensa uma visão de mundo e de futuro. O mito de Che faz parte de um estágio adiantado da degeneração do pensamento comunista, no qual se reinterpreta perversamente, uma vez mais, o prognóstico do Manifesto Comunista segundo o qual "a libertação dos trabalhadores será obra dos próprios trabalhadores". A missão libertadora, que em Lenin havia sido delegada a um partido e, com Stalin, a um Estado, tornava-se apanágio de um grupo de revolucionários exemplares, "homens novos" precursores, que deviam servir de modelo à plebe inerte dos homens comuns. Nesse estágio, a polis, fonte da política, deixa a cena e dá lugar ao herói, que a todos salvará com seu sacrifício. A celebração da figura de Che equivale a uma condenação geral da política.
Romântico e reacionário, o mito de Che nasce no solo contaminado pela monstruosidade do "socialismo real" da União Soviética, quando feneciam as grandes esperanças depositadas na classe operária, na luta de classes e nos partidos de massas. Mas esse mito só se difundiu tão amplamente porque desempenhou funções úteis para diferentes atores políticos. Na Cuba de Fidel Castro, que mimetizou o socialismo soviético e se subordinou à geopolítica de Moscou, o culto de Che cumpriu papéis de domesticação social ("seremos como o Che", repetem compulsoriamente as crianças nas escolas) e serviu para avivar a influência de Havana entre as correntes de esquerda latino-americanas desencantadas com a URSS. Nessas correntes, funcionou como justificativa teórica da "fuga para a frente", rumo às aventuras guerrilheiras que deixaram um saldo humano trágico, mas permitiram circundar o impasse intelectual representado pela falência, então já evidente, dos partidos comunistas oficiais.
O mito é negação da história, mas os mitos têm sua própria história. Gary Prado, um dos antigos oficiais bolivianos envolvidos na captura de Che, acredita que a adoração do guerrilheiro caído "tornou-se uma fábula, um negócio, apenas um show". Ele repete o senso comum, que está errado. Depois da queda do Muro de Berlim e do fim da URSS, o culto de Che passou a servir, paradoxalmente, como referência de um socialismo livre das manchas indeléveis deixadas pelo totalitarismo stalinista e, também, de um projeto distinto daquele implantado em Cuba, que perdeu quase todo o antigo brilho aparente. A vantagem insuperável do homem que morreu na Bolívia, há 40 anos, é precisamente a circunstância de não ter sobrevivido.