Entrevista:O Estado inteligente

domingo, outubro 07, 2007

DANIEL PISA

A educação aloprada


A forma como vem sendo criada a tal Secretaria de Ações de Longo Prazo é a própria demonstração de sua inutilidade. Primeiro, foi convidado para dirigi-la o professor-profeta Roberto Mangabeira Unger, aquele que já apoiou Ciro Gomes, já pediu o impeachment de Lula e já se associou aos evangélicos - ou seja, um sujeito de enorme coerência. Depois, como a sigla era ''''Sealopra'''' e, portanto, ecoava o incômodo adjetivo aplicado pelo presidente do PT, Ricardo Berzoini, aos correligionários flagrados com uma mala de dinheiro no caso do dossiê Vedoin (os ''''aloprados''''), decidiu-se mudar a palavra ''''Ações'''' para ''''Planejamento'''', aquela que o regime militar apreciava. Agora, com o veto do Senado à criação do órgão, o presidente decidiu fazê-lo por decreto - ah, o prazer da canetada! - e assim fundar nada menos que o seu 37º ministério, com o kafkiano nome de Assuntos Estratégicos. Afinal, ''''choque de gestão'''' na máquina pública é contratar mais gente...

Na quarta passada, o quase novo ministro achou por bem dar uma amostra de suas idéias brilhantes para o futuro do país do futuro. Disse, por exemplo, que quer da Amazônia uma combinação de produtividade com preservação, o que poderia ser obtido a partir de uma subdivisão de seu território. Em seguida, pregou audácia ao Brasil para que não seja uma economia baseada na mão-de-obra barata, como a China. E ainda defendeu uma ''''estratégia nacional de defesa'''' como parte de uma ''''estratégia de desenvolvimento nacional''''. Aí está, enfim, o papel da Sealopra: atirar, e mal, para todos os lados. Ou ao menos assegurar um discurso com verniz de anos 70 para que o governo Lula - que nesta semana declarou que pretende se licenciar em 2010 para apoiar um presidente comum aos partidos aliados - venda a imagem de não ter pensado apenas em seus ganhos imediatos, em seu projeto de poder, em seu ''''nunca antes''''.

A realidade, porém, é outra. Tal como no governo anterior, a incompetência e o corporativismo pouco fizeram em favor da infra-estrutura, de sistemas como o tributário e o político e, acima de tudo, da educação - de tudo que diz respeito ao longo prazo. Há gargalos e semicolapsos nos mais diversos setores, como transportes, energia, saúde e saneamento. A carga tributária só faz crescer, alimentada por um governo cujos gastos são cada vez maiores, especialmente em pessoal, com aumento de 13% ao ano. O sistema político é ridículo, a tal ponto que nem mesmo medidas básicas e universais - a fidelidade partidária e a proibição do nepotismo - passam no Legislativo; imagine repensar a fundo essa questão, revendo até, por exemplo, o número de partidos. E a educação, embora com algumas melhoras estatísticas - como o aumento de alunos universitários em 13%, impulsionada pela ajuda pública a instituições privadas -, continua abaixo da crítica.

Segundo o PNAD, ainda que nenhuma publicação tenha destacado esse drama, o número de alunos no ensino médio caiu 0,7%. E isso num país onde o nível de aprendizado de quem termina o terceiro ano do ensino médio corresponde ao que ele deveria ter aprendido até o último ano do ensino fundamental. Em outras palavras, adolescentes com mais de 17 anos sabem apenas o que deveriam saber aos 14. Como se não bastasse, a maioria da população abandona a escola antes disso, ou seja, sabendo no máximo redigir um bilhete e fazer a tabuada, afora um punhado de datas, nomes e fórmulas. No ensino brasileiro, temos o pior dos dois mundos: não se aprende a ser metódico nem a ser independente. Forçados a repetir mecanicamente as informações - muitas delas erradas ou ideologicamente comprometidas, como tem demonstrado Ali Kamel -, os alunos não assimilam conceitos e não desenvolvem raciocínios; logo, não sabem usar a criatividade que, segundo o tolo consenso, distinguiria os brasileiros. São desobedientes - praticamente mandam nos professores hoje em dia - e ao mesmo tempo improdutivos. E passam de ano, graças à ''''progressão continuada'''', outra invenção tosca dos tucanos.

Daí a carência de mão-de-obra qualificada que angustia tantas empresas hoje, para não falar do vale-tudo moral em que mais e mais afundamos. A melhor ação de longo prazo seria mudar esse quadro. Mas um traço da cultura brasileira - ou da educação, dá no mesmo - é justamente supor que a solução de um problema venha da abertura de uma repartição pública, assim como para combater um crime é preciso promulgar mais uma lei... Veja a demagogia do governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ''''o do painel'''', que determinou a abolição do gerúndio. Eu não sabia que a língua portuguesa está sob comando de políticos. Não espanta que nosso ensino seja tão atrasado, tão burocrático, tão alheio ao mundo contemporâneo. É um celeiro de aloprados.

RODAPÉ (1)

É um prazer a leitura em simultâneo de 1808, de Laurentino Gomes (Planeta), e O Príncipe Maldito, de Mary del Priore (Objetiva), antes de mais nada pela escrita clara e fluente. Laurentino Gomes, baseado no trabalho de autores como Oliveira Lima, Pedro Calmon e Patrick Wilcken, resume a história da viagem de dom João VI ao Brasil até a independência em 1822. Mary del Priore conta a decadência da família imperial por meio de Pedro Augusto, neto ''''maldito'''' do melancólico dom Pedro, e a desilusão de seu sonho de ser dom Pedro III. É difícil não rir com tristeza do comportamento patético da nossa monarquia.

A questão por trás dos dois livros, embora eles fiquem mais na superfície descritiva, é a maneira como a monarquia portuguesa tentou se transladar para um país sem tradição nem instituições e, apesar de lançar algumas bases do Estado-nação, não conseguiu forjar uma ''''elite'''' que merecesse o nome, que fosse além do privilégio e do improviso. A colonização portuguesa se acentuou num momento em que Portugal decaía no cenário da modernidade, e com a unidade nacional contraímos alguns ''''vícios de origem'''', como Sérgio Buarque de Holanda mostrou. (O livro de Adam Smith, A Riqueza das Nações - que é tão citado quanto ignorado, a exemplo de O Capital, de Karl Marx -, também trata do assunto, mostrando as diferenças da colonização inglesa nos EUA, para não falarmos de sua fundação republicana.) E eles não foram enfrentados, como ainda não são, embora Portugal mesmo seja exemplo de que é possível.

RODAPÉ (2)

Já a leitura simultânea ou seguida dos dois romances recém-publicados de Alessandro Baricco, Seda e Esta História, cria um problema. O primeiro livro, de 1996, é curto e sutil, cheio de temperos orientais e (agora no bom sentido) kafkianos. O segundo é mais longo e confuso, sem igual poder de sugestão em sua história de carros e guerras. Num ano em que tantas boas novelas já foram editadas no Brasil - como as de Ian McEwan, Philip Roth e John Banville, citadas aqui -, vá de Seda. A escrita é sedosa como o tema: as sucessivas viagens do protagonista, Hervé Joncour, ao Japão, de onde traz ovos de bichos-da-seda para sua cidadezinha na França. Hervé não sabe por que sempre vai ao Japão e o que mais busca lá, mas nós sabemos o que encontra.

MINICONTO

Ela sabia que não teriam futuro. Ele era bem mais velho, casado, pai, ocupado demais. Ela, incapaz desse sexo casual que suas amigas de geração tentam e tentam fazer à maneira suposta dos homens. Mas não bastava uma troca de olhares numa esquina de corredor, nem mesmo aquela paquera sem conseqüências exceto a de enviar uma mensagem ''''nós poderíamos ser felizes juntos''''. Como saber que amaria um homem se as circunstâncias permitissem e não ter nem ao menos o gosto de sua boca, pele e sexo? Antes um perfume na memória do que um amargor de arrependimento. E assim foi, e assim se fez: eles se amaram como se o mundo não existisse ou fosse acabar amanhã. Mais feliz e mais triste, na manhã seguinte, ela voltou a mirar o futuro.

DE LA MUSIQUE

O novo CD de Djavan, Matizes, pode ser visto como mais um sinal do esgotamento - natural até certo ponto - de uma geração. Todas as canções parecem lembrar outras do passado, numa espécie de autoparódia, como se ele não se livrasse das mesmas idéias melódicas. Mesmo com sua sensibilidade rítmica e sua voz excelente, não nos cativa em nenhuma faixa.

POR QUE NÃO ME UFANO

Falei acima da abolição do gerúndio decretada por José Roberto Arruda. Sim, a doença do gerundismo é incômoda, como quando o tal operador de telemarketing (para usar outra expressão feia) diz que ''''estaremos entregando seu cartão no prazo de três dias úteis'''', em vez de ''''vamos entregar''''. Mas, por favor, não matem os gerúndios. O que seria de Fernando Pessoa sem eles? ''''De quem é o olhar/ que espreita por meus olhos?/ Quando penso que vejo,/ quem continua vendo/ enquanto estou pensando?''''

Arquivo do blog