Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, outubro 03, 2007

A cura por Schopenhauer - Roberto DaMatta




O Globo
3/10/2007

Sem livros, eu teria me desesperado há muito tempo.
Arthur Schopenhauer

Somos levados pela vida. Mas a "sabedoria" do velho lema não resiste a alguns segundos de reflexão. Como não ser levado pela vida se o cara está vivo? Só os mortos não são mais levados pela vida e estão brutalmente parados. O congelamento ridículo do morto é o centro do paradoxo. Como morreu, se estava vivo? A pergunta burra é fundamental para compreender esse "ser levado pela vida": a condição básica para morrer é estar vivo!

Viver é ser levado e, mais das vezes, arrastado pelo ralo da existência. O sujeito se esconde no quarto ou no alto cargo pensando que vai escapar da queda-d"água, mas está apenas entrando num outro tipo de corrente. Os renunciantes do mundo, quando não são marginais plenos, fundam seitas religiosas e movimentos sociais. Foi o caso de Antonio Conselheiro, cujo isolamento da vida comunitária teve tal profundidade que acabou por trazê-lo de volta ao seu mundo, no mais trágico conflito aberto da história brasileira: a guerra de Canudos.

Todos somos cegos sobre nossas vidas porque, como reitera o trovador, de perto ninguém é normal. O filósofo Schopenhauer dizia que, nos seus minúsculos detalhes, tudo na vida parece ridículo ou cômico. Tal como uma gota d"água na qual vemos uma multidão agitada de protozoários. Mas note bem o verbo parecer. Pois se chegarmos perto do microscópio, como fazem os terapeutas, descobrimos que o ridículo e o cômico adquirem novos significados. Como Schopenhauer foi um renunciante do mundo no melhor estilo indiano, cujas lições de sabedoria conhecia e certamente tentou seguir, ele também adotou o olhar distanciado, promovido pelo cume das montanhas, que faz desaparecer o pequeno, deixando ver somente o grande.

Esses efeitos de estranhamento por aproximação ou distanciamento são importantes para lidar com os fatos da vida. Quando um evento avassalador nos pega de surpresa não podemos usar o microscópio. Pois se entrarmos dentro do que nos arrasta ficamos presos na correnteza. Nesses casos, devemos fazer uso da visão do cume da montanha que nos ajuda a distinguir o grande do pequeno. E faz com que até mesmo os fatos irremediáveis, como a morte súbita ou a doença incurável, percam seu poder esmagador.

No mundo público, é comum olhar o adversário pelo microscópio para vê-lo perdido nos seus próprios defeitos, enquanto vemos a nós mesmos pela lupa do Lula: como os mais inovadores, os mais honestos e os mais perfeitos. Como magníficos descobridores da pólvora: aqueles que fizeram tudo "neste país". A lupa do narcisismo torna o outro invisível. Na política, é rotineiro o olhar do cume da montanha de quem faz a campanha eleitoral e, dali, vê tudo o que precisa ser feito; e o olhar próximo dos administradores que, reacionários, apresentam a perspectiva oposta quando se desculpam pelo que foram incapazes de realizar justamente pela visão da grama e não do gramado.

Os defeitos são dimensões da proximidade, já as qualidades surgem com a distancia contida na saudade, na generosidade e na compaixão. O amor é ponte porque, num sentido preciso, ele liga virtudes longínquas, como a esperança, com as próximas, como a caridade. Foi por isso que São Paulo apóstolo falou que de nada vale o sino do melhor metal, se no seu som não há amor. Do mesmo modo, de nada valem leis formalmente perfeitas e que resolvem tudo, se não há juízes, delegados, policiais, advogados e cidadãos para segui-las e honrá-las.

Esses pensamentos são o resultado de uma indizível perda pessoal que tenho elaborado, entre outras coisas, pela leitura. Na sua humildade de túmulos quando fechados, mas com sua voz profética e amorosa quando abertos, os livros - como a vida e as pessoas - nos levam para outros livros.

Thomas Mann me reconduziu a Freud, fez-me reler Nietzsche e me despertou para Schopenhauer, cuja filosofia centrada na vida como sofrimento, bem como na experiência estética como finitude graciosa dentro da dura indiferença do mundo, tem me ajudado a transformar a aridez da perda no campo verdejante da saudade.

Foi, pois, o próprio Arthur Schopenhauer, e não a lista de best-sellers, que, por seu turno, levou-me a Irvin Yalom, e ao seu maravilhoso "A cura de Schopenhauer". Ali eu me inspirei para escrever sobre esse princípio da proximidade e da distância como ponto fundamental para entender o meu cotidiano e - quem sabe? - cumprir o verdadeiro papel do cronista. Pois o que faz a crônica se não tentar tirar o leitor da caótica indiferença de um cotidiano fragmentado por todo tipo de injustiça, imoralidade e incúria governamental, fazendo-o olhar para si mesmo com mais caridade, paciência e esperança?

Quem sabe não podemos usar Schopenhauer para, se não "curar" o Brasil, pois isso seria muita inocência, para, pelo menos, aliviar a confusão de um único leitor. O que seria uma benção.

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