O exercício da crônica política, nesta fase aloprada em que os três poderes, da cúpula aos escalões de execução, parecem perdidos no manicômio das mais absurdas contradições, reclama o extremo cuidado na interpretação de manobras suspeitas e na tentativa de seguir o fio lógico.
Puxando a fila, o comportamento do presidente Lula é um enigma tosco, mas intrigante. Malha uma no casco e o repique na ferradura e continua pairando, blindado, no alto das pesquisas. O Bolsa Família é a emblemática marca do líder sindical das greves do ABC paulista, defensor das reivindicações populares e contra as injustiças sociais.
Nem ele nem o governo prezam a coerência ou demonstram a mínima preocupação com a respeitabilidade dos cargos e dos atos. O caso do apagão aéreo arranha de leve a popularidade do aspirante à liderança mundial do Mercosul e dos humildes, sem outra explicação de que o caos da incompetência que transformou no inferno das noites insones na imundície dos aeroportos atinge apenas a cerca de 8% da população.
Vá lá que faça sentido. E como justificar o cateretê das severas ameaças e das punições aos controladores de vôo diante da comédia do acordo alinhavado às pressas com a ameaça de uma greve em cima da abertura dos Jogos Pan-Americanos?
Os rastros cruzados no terreno enlameado das negociações com o olho no relógio denunciam o corre-corre da aflição. Como o torrencial orador não perde vaza para deitar o verbo, pela manhã o presidente impostou a voz na grave advertência de que o governo iria endurecer o diálogo com os controladores de vôo. A manteiga da empáfia amoleceu nas três horas da amena reunião do presidente da Infraero, brigadeiro José Carlos Pereira, e os aeroportuários. Empacado na mesquinha proposta de um reajuste de 3%, o governo dobrou para 6%, retroativo a abril e maio deste ano. Para começo de conversa, com a promessa de novos entendimentos depois do Pan. Vale-refeição, servido como sobremesa, saltou de R$ 20 para R$ 22, o que não é nada mesmo. Mais consistente a decisão da estatal de contratar 1.800 concursados e reduzir o número dos que entraram debaixo do pano com o bloco dos comissionados.
Não faltaria ao brilho da encenação o toque do ridículo: o presidente da Infraero esqueceu de comunicar ao ministro da Defesa, Waldir Pires, que fechara o acordo com os aeroportuários. Bem pensado, não custava nada dar a notícia ao ministro. Mas, para quê?
Depois de quatro anos e meio no Palácio do Planalto, Lula se deu conta de que a insegurança é um dos martírios impostos à sociedade e anunciou o Programa Nacional de Segurança Pública e Cidadania, envolvendo seis ministérios do monstrengo de 37, para o combate à violência em 11 regiões metropolitanas do país. Nos três anos e meio restantes do segundo mandato, serão investidos R$ 3,5 bilhões no aumento do piso salarial dos policiais civis e militares, na construção de 187 presídios para jovens infratores, além de outras previsões.
Um programa, como se constata, de presidente que está confiante que elegerá o seu sucessor ou que, lá no fundo da alma, alimente o sonho de um terceiro mandato.
Ora, promessas e juras de não brincar com a democracia não resistem aos apelos de um sacrifício pelo país. E, com o Judiciário enfraquecido pela tolerância com a impunidade e o Congresso impopular, no buraco negro cavado pelos escândalos em cascata, a orgia das mordomias e da absolvição dos denunciados pela prática da corrupção - o presidente quando se mira no espelho enxerga o rosto do insubstituível.